O diálogo platónico Protágoras discute se a virtude política é ensinável. Em diálogo surgem as figuras do sofista Protágoras e de Sócrates. Platão, de uma forma claramente dialéctica, opõe duas posições para delas extrair uma terceira, numa espécie de síntese. Perante a crença de Protágoras na possibilidade e necessidade de ensinar essa virtude política, Sócrates contrapõe a posição tradicional da aristocracia homérica, a da não ensinabilidade da virtude. A questão, porém, é conduzida para que Sócrates aceite que é possível ensinar a virtude, mas porque esta é conhecimento. Não é esta discussão, contudo, que me interessa aqui.
O que me interessa é o mito que Protágoras conta em defesa do seu ponto de vista. Muito rapidamente: o titã Epimeteu, estando responsável pela configuração das espécies mortais, gastou todas as capacidades e poderes que tinha para distribuir pelas espécies antes de chegar ao homem. Perante tal situação da espécie humana, outro titã, Prometeu, decide roubar o fogo e a técnica a Atena e a Hefesto e dar-lhos para que ela sobrevivesse. Contudo, isso não era o bastante, pois os homens ficaram a saber trabalhar, mas não sabiam viver uns com os outros, faltava-lhes a arte política. E é Zeus que resolve o assunto com a dádiva da soberania.
Esta dádiva era composta pelo respeito (aidôs) e pela justiça (dike). Para o caso daqueles que não usavam, na vida da cidade, de respeito e de justiça, Zeus decretou a pena de morte. Podemos agora perguntar: o que é a virtude política? É o exercício do respeito pelo outro e a justiça na distribuição do que compete a cada um. Os dois termos gregos são de tradução complexa, fundamentalmente o termo aidôs. Pode ser entendido como respeito, numa formulação mais de carácter moral, mas também, numa dimensão mais afectiva ou psicológica, pode ser traduzido como vergonha ou pudor. Seja como respeito ou como vergonha e pudor, aidôs representa a necessidade da justa distância entre os homens: nem demasiado longe uns dos outros nem excessivamente perto. O exercício da justa distância é complementado com o da justiça, o da distribuição justo daquilo que cabe a cada um.
Apesar de o mito do Protágoras não dar um conteúdo semântico aos dois termos, deixando-os em aberto, ele acaba por estabelecer aquilo que é o horizonte político do Ocidente, aquilo que ele deve sempre buscar nas diversas situações históricas: a justa medida, o equilíbrio e a harmonia dentro da comunidade. Este post surge, então, como uma espécie de prolegómeno a um outro prometido há tempos sobre o que fazer nesta nova situação política criada a partir de 1989. Define o horizonte daquilo que tenho para dizer.
O que me interessa é o mito que Protágoras conta em defesa do seu ponto de vista. Muito rapidamente: o titã Epimeteu, estando responsável pela configuração das espécies mortais, gastou todas as capacidades e poderes que tinha para distribuir pelas espécies antes de chegar ao homem. Perante tal situação da espécie humana, outro titã, Prometeu, decide roubar o fogo e a técnica a Atena e a Hefesto e dar-lhos para que ela sobrevivesse. Contudo, isso não era o bastante, pois os homens ficaram a saber trabalhar, mas não sabiam viver uns com os outros, faltava-lhes a arte política. E é Zeus que resolve o assunto com a dádiva da soberania.
Esta dádiva era composta pelo respeito (aidôs) e pela justiça (dike). Para o caso daqueles que não usavam, na vida da cidade, de respeito e de justiça, Zeus decretou a pena de morte. Podemos agora perguntar: o que é a virtude política? É o exercício do respeito pelo outro e a justiça na distribuição do que compete a cada um. Os dois termos gregos são de tradução complexa, fundamentalmente o termo aidôs. Pode ser entendido como respeito, numa formulação mais de carácter moral, mas também, numa dimensão mais afectiva ou psicológica, pode ser traduzido como vergonha ou pudor. Seja como respeito ou como vergonha e pudor, aidôs representa a necessidade da justa distância entre os homens: nem demasiado longe uns dos outros nem excessivamente perto. O exercício da justa distância é complementado com o da justiça, o da distribuição justo daquilo que cabe a cada um.
Apesar de o mito do Protágoras não dar um conteúdo semântico aos dois termos, deixando-os em aberto, ele acaba por estabelecer aquilo que é o horizonte político do Ocidente, aquilo que ele deve sempre buscar nas diversas situações históricas: a justa medida, o equilíbrio e a harmonia dentro da comunidade. Este post surge, então, como uma espécie de prolegómeno a um outro prometido há tempos sobre o que fazer nesta nova situação política criada a partir de 1989. Define o horizonte daquilo que tenho para dizer.
Não me leve a mal mas a forma como terminou o seu texto fez-me sorrir.
ResponderEliminarPoderia ser um matemático a contextualizar um problema antes de se atirar à sua resolução e, com rigor característico dos matemáticos, enunciando as premissas, as metodologias, o objectivo a atingir.
Mas não é um matemático até porque os matemáticos, apesar de tudo o que se pensa deles, são mais dados à intuição e à ligeireza que os filósofos.
Estava curiosa e ainda mais o estou agora vendo os dados que colocou em cima da mesa. Diria eu que dados exógenos à razão como as paixões nacionalistas, as rivalidades ancestrais, a imponderável reacção da natureza humana face a factores limites, podem ficar fora de uma análise como a que se prenuncia?
Mas vou ficar à espera, com muita curiosidade.
Talvez eu seja uma matemático frustrado. Estou falar meio a brincar e meio a sério. Só uma consideração sobre o que diz. Paixões, rivalidades, reacções, todas as figuras do sentimento, não são exteriores à razão política. Aliás, o mito do Protágoras refere isso. Respeito e justiça são formas de racionalizar essas figuras do sentimento. Quando não chegam para tal, o direito positivo, a pena de morte de Zeus, entra em acção. O Mito do Protágoras é um documento de filosofia política muito interessante e raramente se dá atenção devida à sua interpretação.
EliminarHá alturas a que a minha intuição, imediatista por natureza, não chega. Ter-me-ei que deixar de short cuts e pensar um bocado mais esforçadamente para alcançar o que me diz.
ResponderEliminarO respeito e a justiça são formas de racionalizar as paixões, as rivalidades?
Não tinha pensado nisso.
Mas são formas de as racionalizar ou formas de as conter? Não é a mesma coisa (pois não?).
Que a pena de morte actue como punição suprema em qualquer das manifestações desordeiras do que se referiu, percebo.
Mas, ok, vou ficar aqui a pensar enquanto espero pela demonstração do intrincado teorema que nos prometeu.
Não é apenas uma questão de as conter. Peguemos em aidôs. A tradução por respeito é muito redutora. Aidôs também significa pudor e vergonha. Se o respeito é, como diz Kant, um sentimento racional, então podemos encontrar um fio condutor interessante para pensar. Parte-se do excesso da paixão e da rivalidade, dessa exuberância do sentimento de si, o aidôs vai trabalhá-lo a vários níveis. O pudor de ser excessivo, a vergonha perante o outro que esse excesso pode trazer. Há toda uma dinâmica interior que culmina no sentimento de respeito. Este pode ser visto tanto como respeito por si como respeito pelo outro (aliás, sempre presente como aquele perante o qual se sente pudor ou vergonha). Na minha óptica, não se trata aqui de uma mera contenção, mas de um exercício ético sobre si mesmo, que torna racionais as paixões e as rivalidades (por exemplo, a economia de mercado, num outro âmbito, é uma forma de racionalização da rivalidade). O mesmo se poderá dizer de dike, a justiça. Não a entendo como uma mera regra distributiva, embora ela o seja, mas também como um exercício interior de reconhecimento do outro.
EliminarSó perante a falência destas estratégias é que entra a contenção. Esta feita pela violência do direito positivo, a pena de morte segundo o mito. Aqui fala uma outra razão, não a razão individual mas a colectiva.
Na minha tese está subjacente uma ideia: a razão não é o oposto da paixão. As paixões são o conteúdo dinâmico da razão e é por isso que a razão pode surgir, e surge muitas vezes, aos nossos olhos como irracional. A história do século XX é uma longa e dolorosa prova disso.
Li com atenção o que escreveu. Numa primeira leitura fui tentada a discordar. Depois de 'racionalizar' a minha reacção aos seus argumentos e de os ver segundo uma perspectiva diferente da que estava a usar inicialmente, acho que já estou 'no ponto' ou seja, acho que já poderei compreender melhor a sua base de partida.
Eliminar