O Papa Francisco tem o condão de irritar uma certa direita e de
agradar a uma certa esquerda. O que acontece com ele não é, porém, muito
diferente do que aconteceu com João Paulo II, mas este agradava a uma certa
direita e desagradava a uma certa esquerda. Na verdade, para além do estilo
pessoal e das circunstâncias dos respectivos papados, não há diferenças, no
essencial, entre eles. Como não há entre ambos e Bento XVI. Voltemos ao que
irrita tanto certa direita. Em abstracto, o que a irrita é que Francisco não
seja um chefe político, o seu chefe político global. De forma menos abstracta,
o que a irrita não são sequer as questões de ordem moral, a abertura que o Papa
tem ostentado para com os recasados e os homossexuais, ou a sua atenção aos
problemas ecológicos. O que a irrita são as questões de ordem económica e a
relação com o Islão.
Comecemos com as questões económicas e com uma longa citação de um artigo recente
de Francisco Sarsfield Cabral: “O Papa
Francisco é frontal e coerente, nas palavras e nos actos. No início do seu
pontificado chocou algumas pessoas, nomeadamente com afirmações sobre problemas
económicos e sociais. Depois, lendo com atenção o que o Papa dizia,
verificou-se que ele falava segundo a Doutrina Social da Igreja (DSI) – algo
que muitos católicos acham uma doutrina simpática, mas ignoram na prática.
Francisco veio, afinal, lembrar que essa Doutrina é mesmo para aplicar.” Na
verdade, a DSI está longe dos devaneios dos teóricos do liberalismo
contemporâneo e isso irrita as elites que vêem como virtuosa a devastação social fomentada pelas
políticas ditas neoliberais e ordoliberais (a versão alemã do liberalismo
contemporâneo).
A posição da Igreja não nega a propriedade privada dos meios de
produção, a iniciativa empresarial e o papel do mercado na economia. Em suma,
não nega o liberalismo, mas tempera-o. A DSI aproxima-se das antigas
perspectivas da democracia-cristã e da social-democracia. Valoriza a ideia de
comunidade e de integração de todos nessa comunidade. Esta é uma perspectiva
cristã, mas não é a perspectiva de muitos cristãos. E isso é irritante para as
elites sociais – nomeadamente, as católicas – que usam a Igreja para se
diferenciar, reafirmar o poder e reproduzir o seu estatuto social. A irritação
subjaz na forma desdenhosa com que tratam o actual Papa: o Papa Chico.
Outro motivo de irritação emerge com o problema do Islão. Apesar dos
atentados levados a cabo pelo radicalismo islâmico, Francisco recusa-se a
aceitar a existência de uma guerra religiosa – apesar de defender que o mundo
está em guerra – e de ver o Islão com uma religião inimiga da convivência
pacífica entre os homens. Tenho escrito múltiplas vezes sobre o problema do
Islão, um assunto para o qual fui despertado pela já longínqua Revolução
Iraniana, em finais dos anos setenta do século passado. Há no Islão uma
desconformidade com a Modernidade e o Iluminismo muito mais acentuada do que
aquela que existia entre essas dinâmicas da História e o Cristianismo, até
porque muitos valores da Modernidade e do Iluminismo têm a sua origem no
próprio Cristianismo. Não tenho dúvidas sobre o facto de certos sectores do
Islão quererem – e agirem em conformidade – um conflito intercivilizacional.
A questão que se coloca, contudo, é se o chefe da Igreja Católica deverá
reconhecer a existência de uma guerra religiosa entre o mundo cristão e o mundo
islâmico. O que significaria esse reconhecimento? Em primeiro lugar,
significaria o corte com a trabalho de diálogo com o Islão iniciado por João
Paulo II e continuado com Bento XVI. Depois, significaria que, de um momento
para o outro e por iniciativa do Papa, o mundo islâmico (e este está presente
por todo o Ocidente) e o mundo de origem cristã se tornariam, formal e
materialmente, inimigos. Isso poderia, por exemplo, dar origem a guerras civis
em certos países europeus, instabilizar ainda mais as fronteiras com o mundo
muçulmano, a começar pela da Turquia e acabar com os nossos vizinhos de
Marrocos. Julgo que os grupos islâmicos radicais agradeceriam o favor.
Francisco não é ingénuo nem alguém que está ao serviço do inimigo. É
antes de mais um jesuíta. E esta característica não pode ser dissociada da sua
idiossincrasia pessoal. E os jesuítas foram e são educados para defender a
Igreja e o Papa. Como jesuíta, Francisco é um diplomata e diz aquilo que quer
dizer e não diz o que não quer. Há nele frontalidade mas também diplomacia.
Como Papa, como sumo pontífice (pontifex), ele é construtor de pontes. E é isso
que ele faz. Construir pontes com o outro. Seja este outro alguém que não segue
a moral católica, alguém que pertence ao mundo dos excluídos, alguém que é
ateu, ou alguém que professa outra fé. Um Papa não é um capo político. A dimensão que é a sua é supra-política, mais abrangente
e mais profunda. É por isso que os Papas têm essa capacidade persistente de
irritarem umas vezes a direita, outras a esquerda, e, por vezes, as duas ao
mesmo tempo. É para isso, porém, que eles são o que são.
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