sexta-feira, 18 de abril de 2014

Uma imagem simbólica


Quando no Verão de 1964, chego a Torres Novas, ainda não tinha oito anos. Foi nessa altura que formei uma imagem simbólica que seria, para mim, o resumo da ditadura de Salazar. Recordo, embora a minha casa não fosse um sítio onde se falasse de política, de acontecimentos anteriores a 1964. Nunca esqueci o início da guerra colonial, da campanha massiva do regime e do célebre Angola é nossa. O mesmo se passou com a crise do Congo Belga, onde retive o nome de Moisés Tschombe. E, como não poderia deixar de ser, lembro-me do assassinato de John Kennedy. Estes acontecimentos chegavam-me através dos noticiários. Tirando a violência envolvida, não me diziam nada.

Tenho ainda presente o dia quente em que, com a minha mãe, fui matricular-me, nesse ano de 1964, na terceira classe. Subimos da praça 5 de Outubro em direcção ao largo do Salvador, a meio da subida entrámos no palácio Mogo de Melo. Ali funcionava, além das finanças, a delegação escolar. Entrava-se por um portão de ferro, subia-se, à esquerda, alguns degraus, e estava-se na delegação. O regime de Salazar estava ali perfeitamente simbolizado. A imagem com que fiquei foi de umas instalações decadentes, cheias de poeira. Na parede do fundo, duas enormes fotografias – a de Oliveira Salazar e de Américo Tomaz – e, entre elas, um crucifixo. Duas secretárias. Atrás delas dois professores, com ar severíssimo, amostra da violência usada em sala de aula, e com casacos protegidos por mangas-de-alpaca. Escreviam, em enormes livros de registo, os nomes dos alunos. Olhei para aqueles homens e julguei que eram terríveis e muito, mas mesmo muito velhos.

Esta imagem funcionou, descobri muitos anos depois, como fundamento sobre o qual construí a minha visão política do salazarismo. Um regime decrépito e autoritário estava ali desenhado, entrava na minha consciência inocente e ignorante, escondendo-se no inconsciente, para vir à luz quando, muito mais tarde, comecei a interessar-me por questões políticas. Discute-se, ao nível da história contemporânea, se o regime de Salazar era ou não fascista. Independentemente da sua classificação, tinha uma característica claramente totalitária: a natureza geral do regime reproduzia-se em todas as instâncias da vida nacional, tanto nas instituições públicas como na vida privada. A tudo dominava e a tudo abafava. Em todo o lado, havia poeira, decrepitude, mangas-de-alpaca, autoritarismo paternalista e uma violência surda e mal disfarçada. 

3 comentários:

  1. Afinal sou um "presidente" mais antigo do que o Jorge. Julgava que a diferença era menor (ainda bem para o meu caro Amigo), mas também deparei com um quadro bolorento semelhante, apenas encontrei o Craveiro no lugar do Thomaz e três professoras situacionistas, num externato particular vulgar, instalado num 1º andar de um prédio vulgar, existente numa rua vulgar de uma cidade vulgar que por acaso era Lisboa.

    Um abraço

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    1. Só uma leve discordância. Lisboa não é uma cidade vulgar, apesar da ditadura a ter vulgarizado.

      Abraço

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  2. Claro que não, digo eu, que a tenho nos genes. Mas naquele tempo, Lisboa era vulgar porque, por acaso(?), havia uma ditadura que lhe amordaçava a criatividade, como diz e bem.

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