A minha crónica semanal no Jornal Torrejano.
Quando no Verão de 1964, chego a Torres Novas, ainda não tinha oito
anos. Foi nessa altura que formei uma imagem simbólica que seria, para mim, o
resumo da ditadura de Salazar. Recordo, embora a minha casa não fosse um sítio
onde se falasse de política, de acontecimentos anteriores a 1964. Nunca esqueci
o início da guerra colonial, da campanha massiva do regime e do célebre Angola é nossa. O mesmo se passou com a
crise do Congo Belga, onde retive o nome de Moisés Tschombe. E, como não
poderia deixar de ser, lembro-me do assassinato de John Kennedy. Estes
acontecimentos chegavam-me através dos noticiários. Tirando a violência
envolvida, não me diziam nada.
Tenho ainda presente o dia quente em que, com a minha mãe, fui
matricular-me, nesse ano de 1964, na terceira classe. Subimos da praça 5 de
Outubro em direcção ao largo do Salvador, a meio da subida entrámos no palácio
Mogo de Melo. Ali funcionava, além das finanças, a delegação escolar.
Entrava-se por um portão de ferro, subia-se, à esquerda, alguns degraus, e
estava-se na delegação. O regime de Salazar estava ali perfeitamente
simbolizado. A imagem com que fiquei foi de umas instalações decadentes, cheias
de poeira. Na parede do fundo, duas enormes fotografias – a de Oliveira Salazar
e de Américo Tomaz – e, entre elas, um crucifixo. Duas secretárias. Atrás delas
dois professores, com ar severíssimo, amostra da violência usada em sala de
aula, e com casacos protegidos por mangas-de-alpaca. Escreviam, em enormes
livros de registo, os nomes dos alunos. Olhei para aqueles homens e julguei que
eram terríveis e muito, mas mesmo muito velhos.
Esta imagem funcionou, descobri muitos anos depois, como fundamento
sobre o qual construí a minha visão política do salazarismo. Um regime
decrépito e autoritário estava ali desenhado, entrava na minha consciência
inocente e ignorante, escondendo-se no inconsciente, para vir à luz quando,
muito mais tarde, comecei a interessar-me por questões políticas. Discute-se,
ao nível da história contemporânea, se o regime de Salazar era ou não fascista.
Independentemente da sua classificação, tinha uma característica claramente
totalitária: a natureza geral do regime reproduzia-se em todas as instâncias da
vida nacional, tanto nas instituições públicas como na vida privada. A tudo
dominava e a tudo abafava. Em todo o lado, havia poeira, decrepitude, mangas-de-alpaca,
autoritarismo paternalista e uma violência surda e mal disfarçada.
Afinal sou um "presidente" mais antigo do que o Jorge. Julgava que a diferença era menor (ainda bem para o meu caro Amigo), mas também deparei com um quadro bolorento semelhante, apenas encontrei o Craveiro no lugar do Thomaz e três professoras situacionistas, num externato particular vulgar, instalado num 1º andar de um prédio vulgar, existente numa rua vulgar de uma cidade vulgar que por acaso era Lisboa.
ResponderEliminarUm abraço
Só uma leve discordância. Lisboa não é uma cidade vulgar, apesar da ditadura a ter vulgarizado.
EliminarAbraço
Claro que não, digo eu, que a tenho nos genes. Mas naquele tempo, Lisboa era vulgar porque, por acaso(?), havia uma ditadura que lhe amordaçava a criatividade, como diz e bem.
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