Francis Bacon - Man Kneeling in Grass (1952)
Se não exaltar os talentosos, o povo não
compete.
Se não valorizar o luxuoso, o povo não
rouba.
Se não mostrar o desejável, o seu coração
não se perturba.
Lao Tse, Tao Te King, III
Vivia numa terra de cegos e de surdos, e toda a
minha aprendizagem foi a da surda cegueira. Era com ela que abria o mundo
diante dos meus passos, que lacerava a floresta para encontrar um caminho, que
me fazia à estrada para chegar a outro lugar, rasgando horizontes e deixando
para trás a sombra dos gestos, o odor da memória, a pólvora-seca do esquecimento. Ainda o punhal do desejo não se
tinha cravado no peito e dilacerado a carne. Cantava na inocência dos dias,
grato pela ordem do mundo, cantava o silêncio e as trevas, cantava a ignorância
da voz e da luz.
Foi lenta a aprendizagem do desejo. Chegou sem que
desse por isso. Uma mancha desenhou-se no coração. Primeiro, veio como se fora
um ponto. Tocou-me e, lentamente, tornou-se superfície, alastrou na pele e
criou raízes. A mancha era já uma pedra rugosa, que percutia nas entranhas e
ressoava no fundo do espírito. Pela primeira vez ouvi. Os lábios
desprenderam-se e a fala saiu em
torrente. Do desejo nasceu o som e a fala, depois o sentido de todas as coisas
ganhou uma nova floração. Quando, pela Primavera, o sangue correu de cada uma
das chagas, os olhos abriram-se e pela primeira vez distingui a luz das trevas.
Agora que ganhara voz e descobrira os mil matizes o canto silencioso e exultante de outrora calara-se.
Os passos tornaram-se pesados e tudo se aferia pelo vigor com que me inclinava o desejo. Tinha passado a fronteira, entrado numa estranha pátria de onde não
há retorno. Inútil que o rei esconda as aparência luminosas do mundo. O pobre
súbdito descobri-las-á por si mesmo e quanto mais sangrar a ferida da
descoberta, mais luminosas lhe sorrirão. Perturbação, ó doce perturbação, grita
o corpo embriagado pelo prazer e pela dor.
Então, perdido no emaranhado das ruas, mergulhado no
lodo, cego pela luz, o coração treme e uma dúvida insinua-se lentamente. Sim, o
coração está de novo perturbado. Tamanha embriaguez não lhe alivia a dor nem
dissolve a dura pedra que lhe fere as entranhas. Um dia fecha os olhos e
silencia as palavras. Sabe o que é luz e a cor, sabe o que é o som e o sentido,
mas para além deles há um odor desconhecido. Ergue-se e retorna à floresta,
abre um novo caminho e segue lentamente a pista que o novo perfume lhe indica.
Ao longe, um trono de areia e mar espera por ele.
Um texto sublime. Uma viagem ou uma passagem. Da construção sem princípio à desconstrução sem final.
ResponderEliminarUm abraço
Obrigado, JRD.
EliminarAbraço
A internet tem ainda tantos tesouros por descobrir. Encontrei este blog por acaso. Obrigado por todas as partilhas aqui disponibilizadas.
ResponderEliminarLourenço de Azevedo - http://devagar.org
Seja bem-vindo e muito obrigado pelas suas palavras.
EliminarJCM