sábado, 19 de abril de 2014

Teolinda Gersão, Passagens


Devo a Milan Kundera - A Arte do Romance - a atenção cruzada que concedo a duas aventuras paralelas do espírito ocidental, a filosofia moderna e o romance. Descartes e Cervantes são figuras seminais da cultura europeia e abriram o caminho a duas formas diferenciadas de interrogação sobre os seres humanos e a construção da sua subjectividade. Estas duas linhas têm tecido entre si um jogo, no qual se cruzam, transgredindo as fronteiras que na origem o filósofo francês e o romancista espanhol delinearam, e fazendo transbordar as águas de um dos rios para o leito do outro. Ao ler o novo romance de Teolinda Gersão, Passagens, é a evocação deste jogo cruzado na história da cultura ocidental que me vem de imediato à memória.

A estratégia da narrativa consiste em transportar o leitor para o pensamento de cada uma das personagens. A verdade de cada uma delas não é dada pela acção, o que mobilizaria os corpos, mas pela e na consciência, que não se manifesta no espaço público, mas encontra-se encerrada em si mesma. O fluxo da consciência - o pensamento - é então o lugar de veridicção, o sítio onde a verdade de uma família e dos seus membros - vivos e mortos - se revela. E aqui estamos numa das linhas de transgressão do campo do romance em direcção ao da filosofia. Vale a pena citar Descartes: por isso, compreendi que era uma substância, cuja essência ou natureza é unicamente pensar e que, para existir, não precisa de nenhum lugar nem depende de coisa alguma material. De maneira que esse eu, isto é, a alma pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo, e até mais fácil de conhecer do que ele, e ainda que este não existisse, ela não deixaria de ser tudo o que é (Descartes, Discurso do Método, Quarta Parte). Também em Descartes o pensamento (o cogito) é o lugar onde a verdade se revela na evidência. Um dos eixos estruturais do romance de Teolinda Gersão será então o do pensamento recolhido em si mesmo como lugar de passagem para a verdade, e esta será uma das duas passagens estruturantes de todas as outras passagens.

Podemos ler o romance como a história de uma família, de quatro gerações dessa família, como a observação detalhada da constituição de uma tradição assente tanto nas alianças sociais e económicos como na herança genética. O que Passagens nos mostra é que todas as tradições - neste caso, a tradição em forma de família - possuem um duplo discurso, aquele que é manifesto, exotérico - do domínio da linguagem que se expressa tanto na fala (o logos mítico) como nos actos (a praxis ritual) -, cuja natureza é do domínio da aparência, e aquele que é, por essência, esotérico e que permanece velado no espaço público e na linguagem falada. O discurso da verdade - e é este que está em jogo - pertence ao pensamento não manifesto, mas que opera através da rememoração. As personagens, durante todo o romance, rememoram, convocando o passado - mesmo que o passado seja a estadia num motel horas antes - para nele descobrirem a sua pertença e descortinarem a verdade, a sua própria verdade.

O acontecimento que agrega as personagens e desencadeia o processo de anamnese é a morte e o enterro de Ana, aquela que representa o elo de ligação com a geração anterior - a de Olímpia - e as gerações posteriores centradas em Marta e Hugo, filha e neto de Ana. A morte de Ana não representou o fim do pensamento, mas apenas o afastamento - a libertação - do corpo e a possibilidade de uma maior transparência. É esta desencarnação que, por mimetismo inerente a todas as cerimónias fúnebres, se constitui, na trama romanesca, no modelo onde a verdade se desoculta e manifesta. Ao tornar-se em mera coisa pensante, ela acede à verdade, como se pode ver na segunda parte - melhor, no segundo andamento - do romance, Noite. Uma subtil mimesis, porém, leva a que todos aqueles que são convocados a estarem presentes desencarnem, percam o corpo e a acção, e libertem o pensamento, que assim se entrega à rememoração e revelação das suas verdades particulares.

Podemos olhar para o romance como uma composição musical em três andamentos. No primeiro andamento, Ponto de Encontro, a polifonia permite perceber as alianças e os conflitos, os amores, as amizades, a inveja, o ciúme, os interesses divergentes de classe, inclusive. Ana apenas ouve a música do pensamento dos outros, como se a morte desligasse os sentidos físicos, mas não quebrasse os sentidos espirituais. As palavras que expressam o pensamento dos vivos são para ela uma espécie de música, onde o ritmo e a harmonia se sobrepõem à rude articulação do aparelho fonador. O segundo andamento, Noite, é ao mesmo tempo uma ária e um dueto. É a sombra de Platão que permite perceber esta estratégia. Durante a noite, o corpo de Ana fica fechado, sem ninguém que o vele, como se tornou hábito entre nós. E nesse interlúdio, Ana divide-se em duas e conversa consigo mesma, realizando a ideia platónica de que todo o pensar é um diálogo da alma consigo mesma. A verdade da tradição familiar revela-se ali, numa longa ária que é, ao mesmo tempo, um dueto, como se a verdade fosse sempre demasiado pesada para que só um a possa carregar e revelar.

O terceiro andamento, A cerimónia, não nos traz nenhum desenlace que resolva o mistério da intriga. Na verdade, não há qualquer intriga, mas a narrativa da constituição de uma tradição e da verdade que se manifesta nesta. Voltamos à polifonia, mas a musicalidade está presente nesta última parte de três formas distintas. Em primeiro lugar, a cerimónia que conduzirá à cremação do corpo não tem carácter religioso. É apenas acompanhada pela música de Bach. Em segundo lugar, como já foi referido, a obra pode ser lida como uma partitura musical de uma peça em três andamentos, sendo este o último. Por fim, a música tem um papel central no processo de passagem do regime da ratio ao regime do mythos.

Esta é a segunda passagem estruturante do romance. Se a primeira passagem conduz à verdade sob o signo da razão - de uma razão dialogante e romanesca, mas ainda razão (não será a razão platónica e cartesiana também uma razão romanesca?) -, a segunda passagem conduz-nos ao encantamento mítico. O sinal reside na convocação dos elementos, em primeiro lugar, na convocação do fogo. O fogo da paixão que se revela no início desta terceira parte e o fogo que dissolverá o corpo de Ana, devolvendo-o à crueza elementar. A modulação do fogo é apenas uma primeira pista deste processo de mitificação. A polifonia do pensamento dos vivos, a sua natureza musical, vai transformar descrições científicas, como as da decomposição do cadáver ou a do processo de geração de um ser humano, e descrições sociais, como as do papel da família e das mães, numa narrativa mítica. Através da polifonia, isto é, da música, a doxa  e a episteme revelam-se na sua natureza encantatória e transformam-se em mito, que reforçará a tradição dada na família, alargando, assim, o campo da verdade e também o da ilusão. Todas as passagens - as da vida para a morte, da riqueza para a ruína, da felicidade para infelicidade, da indiferença para a paixão, etc. - só são compreensíveis no quadro estabelecido pelas duas passagens estruturais do romance: da ilusão para a verdade e da razão para o mito. E fora disto não há literatura.

Teolinda Gersão (2014). Passagens. Porto: Sextante.

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