Quando é que adquirimos um nome? Não no sentido de no-lo terem dado,
mas no sentido, mais fundamental, de se ter conquistado o próprio nome. Esta
pergunta surgiu na sequência da leitura do romance Fome (1890), do escritor norueguês Knut Hamsun (Nobel da Literatura
em 1920). O romance conta-nos a vida de um jovem pretendente a escritor na
cidade de Kristiania (actualmente, Oslo), entre o tempo da sua chegada e o da
sua partida. É a história de uma derrota, a qual se consuma com a partida do
protagonista da cidade. Para não morrer de fome, acabou por aceitar trabalho
num barco de transporte de mercadorias para o estrangeiro. Nunca o leitor acede
ao verdadeiro nome do protagonista. Ele não é apenas anónimo. É alguém que não
conquistou o seu próprio nome e é como se o não tivesse.
O conflito central da narrativa pode-se descrever, a partir da
linguagem psicanalítica, como o conflito entre o princípio de prazer – o prazer
dado pela escrita e a realização de uma vocação – e o princípio de realidade –
a qual cai sobre o anónimo sujeito da acção como fome. Quando os escassos
recursos se esgotam, o protagonista fica preso num círculo infernal. Para
escrever, precisa de não ter fome nem de perder tempo com outras funções. Para
não ter fome, porém, necessita de fazer alguma coisa que não a escrita, pois o
dinheiro que poderá ganhar com esta será precário. Este círculo, que tem a fome
como vector central, sublinha os limites da condição humana. Por grande que
seja o desejo e por empenhada que a vontade se mostre na realização do desejo,
a necessidade acaba por ser a voz decisiva.
Quase sem dar por isso, o leitor está perante um conflito de dimensões
metafísicas, o conflito entre liberdade e necessidade. A fome não é apenas o sintoma
de uma carência fisiológica. Ela é a voz da realidade, de uma realidade sombria
e poderosa que submete os homens ao seu poder. É este conflito, no entanto, que
permite ao narrador – o anónimo protagonista da aventura romanesca – manifestar
uma outra dimensão, a qual nos dá uma outra perspectiva do conflito. Usando o
monólogo interno e abolindo a relação causa-efeito que se supõe estar presente
na construção romanesca, Knut Hamsun introduz o leitor num universo
indeterminista, marcado pela irracionalidade dos pensamentos e dos actos da
personagem, cujos motivos são, muitas vezes, incompreensíveis para ela mesma. A
introdução deste universo indeterminista entre os pólos da liberdade e da
necessidade é fundamental.
Ele introduz um factor estranho na lógica das coisas e na vida dos
homens. É verdade que o romantismo já teve o seu apogeu, é verdade que na
filosofia as vozes fundamentais do denominado irracionalismo – Schopenhauer,
Kierkegaard e Nietzsche – já falaram, é ainda verdade que a própria Física não
está já muito longe de ultrapassar o universo determinista herdado do século
XVII. Apesar de tudo isso, o século XIX, mesmo na sua parte final, vive ainda
na sombra do mecanicismo determinista da natureza e da concepção de uma vontade
livre herdada do Iluminismo. A narrativa de Hamsun rompe com esse universo,
fazendo conflituar necessidade e liberdade para que se manifeste uma camada de
irracionalidade que interfere tanto nas decisões livres do homem como nas
sequências, determinadas pela relação causa-efeito, das acções. Essa camada é-nos
mostrada, como se disse atrás, através do diálogo interior, cuja utilização por
Knut Hamsun antecipa os grandes nomes da literatura do século XX, como Kafka,
Joyce ou Proust.
Esta intromissão do não razoável, esta manifestação de indeterminações
que desagregam as categorias com que organizamos e pensamos a existência,
deixa-nos ver, em negativo, o funcionamento do princípio de eficácia. A
modernidade preza, fundamentalmente na sua vertente económica, a eficácia e
mede por ela a racionalidade da acção. O que se descobre, ao ler o romance de
Hamsun, é que o homem está muito longe de agir segundo esse princípio de
eficácia, pois nele manifesta-se e arrasta-o para a acção o não razoável, o não
eficaz, o não livre, porque pura e simplesmente indeterminado. A fome surge,
desta forma, não apenas como o que se opõe ao desejo e à liberdade de
realização do protagonista, mas como aquilo que desencadeia a manifestação de
uma realidade que está recalcada na cultura moderna. Os antigos lidaram com
essa realidade através do mito. Mas o homem moderno vive num mundo
desencantado, onde os mitos perderam o fulgor e a potência organizadora da
vida. Resta então que essa realidade se manifeste como irracional, ineficaz,
impotente para realizar o desejo da personagem. Nessa impotência, ela nunca
chega a ter um nome, pois não o conquistou e vê-se obrigada a, literalmente,
zarpar para terras estranhas.
Knut Hamsun (2008). Fome.
Lisboa: Cavalo de Ferro Editores. Tradução de Liliete Martins.
Se bem entendo a metáfora, a impotência obriga a realidade a emigrar.
ResponderEliminarAbraço
Talvez a impotência seja a própria realidade e o que emigre seja o desejo.
EliminarAbraço