José Balmes - El Alba camino a Quilicura (1994)
A luz esbranquiçada e vibrante de uma manhã ensolarada de inverno
entrava pela pequena janela das águas-furtadas, caía sobre a cama, fazendo
reverberar a brancura da coberta, ao mesmo tempo que confirmava a suspeita de
que ali a vida era se não pobre pelo menos frugal, quase o resultado de uma prolongada
ascese. As paredes pintadas de azul cobalto, há muito salitradas, entristeciam
perante a cavalgada ébria das valquírias solares. Ostentavam o efeito do tempo
sobre a matéria, o desenrolar da corrupção que se instala em tudo e, sem condescendência
no julgamento, anuncia o inevitável fim. O tecto inclinado, como o de todas as
mansardas, composto, para esconder o telhado, por frágeis ripas de madeira
castanha, segurava um fio eléctrico, hirto e amarelado pelo tempo, de onde pendia
uma lâmpada nua, então apagada. Ao lado da cama, em desconcerto com o que se
observava, havia uma belíssima cadeira de mogno com assento em palhinha, talvez
a recordação de uma outra vida ou o resultado de um acaso. Parecia conjugar as
funções originais com as de cabide e de mesa de cabeceira. Um livro de capas alaranjadas
repousava ali. Das suas costas, pendia, indolente, um casaco de senhora. No
meio do compartimento tão escassamente mobilado, um homem, de barba e cabelos
acastanhados, vestido com uma camisa azul clara e umas calças antracite, envolvia
com os braços uma mulher, com uma longa saia vermelha e uma blusa branca. As
mãos dele, firmes e determinadas, seguravam-na pela cintura e puxavam-na para
si, como se quisesse fundir-se naquele corpo, tão plástico e maleável se tocado
pelos imperativos da volúpia. Os braços dela, uns belos braços magros e
esguios, despidos, envolviam-no pelo pescoço, respondiam em contraponto aos
dele, num esforço concertante que nunca deixa de fazer sorrir o improvável
espectador. Beijavam-se iluminados pela luz do sol de Inverno, um beijo longo,
ansioso, a anunciar um tumulto tão em contradição com o ambiente quase monacal
daquele lugar. Os seios dela, avolumados sob a roupa, espalmavam-se contra o
peito do homem, enquanto as bocas se sorviam, obedecendo a uma necessidade que
nunca deixa de lado o poder do artifício, para se mostrar como inédita e livre,
e, nesse ardil desenhado por eros ou pelo engenho da vida, transfigurar em glória aquilo
que é vulgar e determinado pela ordem das coisas. O silêncio do lugar conspirava contra o
segredo, pois um segredo sempre existe numas águas-furtadas, já que deixava escutar
as respirações entrecortadas, a incerta harmonia de suspiros e murmúrios, a
grande corrente de ar do desejo, que crescia à medida que o sol matinal desbotava
afrontado pelas primeiras nuvens que carregavam em si os sinais violáceos, quase
negros e terríveis, da grande tempestade prestes a desencadear-se.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.