Juan Vidales Pousa - sem título
Ninguém entra, ninguém sai.
Fecharam a porta, a chave atirada para o entulho, o quintal o tem, e não há
quem a descubra. Se viajares, indo vai, toma o caminho, os pés to darão, não
voltes mesmo que claros fiquem os dias, embriagados de sol, a prometer êxtases
e fogo-de-artifício, vai pelas rotas onde decapitados animais dormem, um céu de
chumbo os cobre, essa é a tua senda. Sem flores pelos canteiros, sem pão nas
veredas, apenas alguns segredos haverá na mão, palavras obscuras, uma sintaxe
aos repelões, sinais na parede pintados, a cal esfacelada, as metáforas
moribundas e um pântano onde flutuam restos de madeira, o caruncho os anima,
flores em decomposição, violetas, rosas bravias, alguns lírios, jarros
maculados, tudo isso murmura na tarde, conspira, tece breves armadilhas de
algodão, cardumes de aves metálicas e peixes minerais em decomposição.
Olhei e vi a noite e o fogo
estava de noite sobre ele, perante os olhos de toda a casa que, à luz da
escuridão, se animava, ansiava caminhos, traçava rotas, desenhava, com mão
firme e lápis de carvão, mapas de fronteiras fluidas e estradas em ruínas. Não
havia pontes, as que de Roma ficaram, o tempo as levara, desfeitas em pedras,
agora distribuídas casa a casa, paredes, muros, fronteiras onde a propriedade
se reparte, alguém neles se senta e risca um fósforo, luz na noite, e fica a
olhar as estrelas, a compor constelações, a inventar mundos de pedras cálidas e
rios de enxofre, uma neblina azotada, rochas maculadas por zinabre, animais em
combustão sobre as areias onde desagua um oceano sem barcos, sem peixes, apenas
algumas gaivotas e dois corvos do mar, marinhos corvos eles o são.
Havia sacrifícios na
acrópole, cristãos por feras no circo chacinados, a multidão berra barrabás,
barrabás, o cordeiro será imolado. Atenas, Roma, Jerusalém, tudo se confunde
neste mundo de águas roxas, universo de goivos incertos e areias movediças. Ao
longe, na tristeza das tardes de domingo, depois da missa do meio-dia, se à missa
foste, e do almoço, a memória é saqueada e fica ali em silêncio, sem devoções,
caída na tentação do sono, por vezes do sexo, sem coragem para abrir um livro,
ou deixar a cidade e para o campo caminhar, ver as searas de trigo, apanhar os
chuviscos, a tarde sempre os traz, gritar os nomes de Deus e colher flores
silvestres, o tempo as deu. Na memória, tudo se funde, Atenas, Roma, Jerusalém,
quem mata a quem? Quem morre? Quem grita? Quem geme? Quem fere? Quem? Quem?
Quem? Quem violou a memória e a despedaçou, a roubou aos dedos, lhe tirou o
coração, lhe abriu um rombo no peito, e na face lhe pôs a dor e a pena? Quem?
Há um rio de música na
fímbria dos dias, uma mão especada no silêncio da entrada, uma corda à espera
da garganta, vermelha de inflamação, que se entrega como um hóspede ao cuidado
da dona da casa. Há… Há… Há… Tudo neste mundo há, mas a porta está fechada,
ninguém entra, ninguém sai, a chave perdida no entulho, a porteira despedida,
pegou um táxi, levou a roupa, a comida, e com um gesto obsceno lavrou um
destino, ali, naquele sítio, onde a memória tudo funde, atenas, roma,
jerusalém, o caminho da índia, colombo, lisboa, antuérpia, paris, londres, tudo
se confunde, se prende, se ata, e a chave tão perdida, e uma secura na
garganta, uma dor no peito, a faca nas costas, tudo se funde na gruta dos
chacais. Colecciono covis, junto dedais, escrevo palavras desconexas, não são
cifras, nem sinais, nem punhos, apenas o ar da madrugada, veio um pouco mais
cedo, e, ao longe, alguém que desconheço compõe calendários, mapas que não sei,
o mundo me roubam, a casa, o quintal, as palavras de minha mãe, os seios das
mulheres que amei, um livro, o jardim de goivos, eu caminho, caminho, pés
estrada fora, sem meta por destino, sem sombra como herança. Caminho, o quarto
vazio, a roupa rasgada, uma cortina caída, a janela escancarada…
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