domingo, 7 de março de 2021

Jeffrey Eugenides, Middlesex

Publicado em 2002, Middlesex, do norte-americano, de origem greco-irlandesa, Jeffrey Eugenides, ganhou o Pulitzer de ficção no ano de 2003. O romance é mercado por duas temáticas identitárias. Por um lado, ele é situado na comunidade grega que emigrou para os Estados Unidos na sequência da primeira guerra mundial e, fundamentalmente, dos conflitos entre gregos e turcos. Não sendo apenas uma resposta à questão quem somos nós?, não deixa de ser uma exploração da vida dessa comunidade, uma descrição dos seus valores, tradições e modos de ser, assim como da forma como se vão integrando na vida americana e alimentam o, e se alimentam do, american dream. É neste pano de fundo comunitarista, que emerge uma outra interrogação, agora sobre quem sou eu? O motivo da interrogação não é metafísico, mas físico, uma deficiência no gene SRD5A2, que codifica a enzima 5-alpha reductase. O resultado é o nascimento de um rapaz, embora com caracteres sexuais externos femininos. É isto que acontece ao protagonista do romance. Calliope – nome que recebeu de baptismo, enquanto rapariga – e Cal, nome que adaptou em adolescente quando se descobriu como rapaz. É um caso de intersexualidade.

Algumas leituras da obra tendem a questionar a necessidade da primeira metade do romance, a sua inutilidade para a questão central que é o drama da adolescente que se descobre ser um adolescente. A primeira metade é a narrativa que traz os avós paternos de Cal de uma aldeia grega, mas em território turco, para os Estados Unidos, em 1922, durante a guerra greco-turca. É um fresco épico que vai até a 1960, ano em que nasce Calliope. A questão que se coloca é a de como narrar a acção à distância de um gene recessivo que vai acabar por se manifestar. O autor fá-lo contando a história de uma consanguinidade intensa, a qual se inscreve na história dos homens e das comunidades. Podemos imaginar uma história genética puramente natural nos animais. No homem, apesar de se poder traçar a história genética dos homens como se traça a de seres de outras espécies, ela, para lá do discurso científico, é incompreensível. O drama de Cal não é um drama proveniente de nenhures, mas inscreve-se na duração, e esta só inteligível através da narrativa. Por isso, Eugenides conta a história de Eleutherios Stephanides, conhecido como Lefty, e da sua irmã e mulher Desdémona Stephanides, os avós de Cal. Conta também a de Milton, filho do casal incestuoso, e de Tessie, os pais de Cal e do seu irmão Capítulo 11 (uma referência ao capítulo da lei das falências dos EUA e à propensão do irmão de Cal para levar os negócios a mau porto).

Uma história de sangue no sangue da história. Em Bithynios, uma aldeia na Ásia Menor habitada pela minoria grega e de onde vêm os antepassados de Cal, o casamento entre primos, considerado incestuoso, era uma prática corrente. Isto significa que a consanguinidade e uma maior concentração de traços genéticos já ocorriam antes do casamento incestuoso dos irmãos Lefty e Desdémona. O filho de ambos, Milton, pai de Cal, acaba por casar também com a filha de uma prima dos pais. Esta história de concentração genética não é pura história genética, mas está inscrita, no romance, na própria história, no sangue que a história, no seu papel de negar continuamente as configurações do mundo humano, faz correr. Os pais de Lefty e de Desdémona morrem vítimas da guerra entre turcos e gregos. Os filhos órfãos fogem para os EUA do momento em que se dá o grande incêndio de Esmirna, motivado pelo conflito greco-turco. Eugenides não deixa de dar uma visão, nas passagens referentes à fuga dos avós de Cal, do genocídio arménio. Se o autor, que dá uma tenção a esses conflitos muito localizados, passa muito por cima a segunda guerra mundial, torna a focar-se na histórica localizada, agora em Detroit, com os seus conflitos interétnicos, como os motins de 1967, mas também a emergência da Nação do Islão, ou as condições de trabalho nas fábricas de automóveis. Narra a ascensão e queda de Detroit. A história de uma desgraça genética precisa da história humana para ser contada, mas não uma história mundial. É sempre a história local, quase que se pode dizer paroquial, que é mobilizada. É sempre a história de comunidades muito precisas e caracterizadas no espaço e no tempo.

A segunda parte do romance foca-se em Calliope e a sua descoberta da realidade sexual que lhe coube em sorte. Está-se em meados dos anos setenta do século XX, ela entrara na adolescência, mas não lhe aparece nem a menstruação nem se lhe desenvolvem os seios, ao contrário do que acontece às suas colegas do colégio feminino que frequentava. A revelação deve-se a um acidente. A narrativa, a partir daqui, concentra-se no processo de reconhecimento da nova situação e na disputa interior do protagonista sobre a sua condição. Eugenides explora a tensão entre cultura e natureza na definição do género e parece questionar a ideia de que o género é uma construção fundamentalmente social. Cal cresceu e foi educado como rapariga e frequentou um colégio feminino. Toda a construção do género foi feita no feminino. No entanto, a sua primeira paixão pelo Objecto Obscuro (uma referência ao filme de Buñuel, O Obscuro Objecto do Desejo), uma colega do colégio, era tipicamente masculina, de acordo com a sua natureza masculina. Quando chega o momento de optar, opta de acordo com o sexo genético e não com o género social, mesmo estando desprovido externamente da genitália masculina.

Se o romance é uma resposta às questões quem somos nós? e quem sou eu?, essa resposta não se funda numa revolta contra a própria condição comunitária e pessoal. A comunidade grega de que Cal provém não deixou de ser uma comunidade grega, mas agora claramente integrada no modo de vida americano, estabelecendo pontes entre os preconceitos da cultura originária e os da cultura em que se integram. Uma imagem de integração do sonho americano. É verdade que a questão racial, mesmo no romance que a trata a partir da visão preconceituosa da comunidade grega, é uma nota dissonante dessa visão idílica de uma América integradora. É como se esta fosse acolhedora para aqueles que a procuram e têm a perspectiva adequada sobre o trabalho e a riqueza, mas fosse impiedosa para aqueles para ela foram levados contra a sua vontade, enquanto escravos. Os gregos que fugiram da Europa são agora plenamente americanos, apesar de ainda serem gregos. Também Cal, ao narrar a sua vida até à assunção da sua identidade masculina, se mostra reconciliado com a sua situação, tendo ultrapassado as inquietações psicológicas, nunca estando em causa outras. Não há qualquer questionamento metafísico e as abordagens da situação circulam entre o conhecimento científico de natureza genética e médica e a abordagem psicológica. Cal quando narra a sua história, quase trinta anos depois, mostra-se completamente reconciliado com a sua natureza. É plenamente homem, apesar daquilo que nele ainda subsiste de feminino. Middlesex não é um romance de revolta, mas de reconciliação.

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