quarta-feira, 18 de julho de 2012

Uma escola monstruosa

Max Ernst - Placa para una escuela de monstruos (1968)

Este artigo de Santana Castilho ou este post de Paulo Trilho Prudêncio mostram a situação monstruosa a que se está chegar no sistema educativo português. A dimensão é absolutamente catastrófica. Depois da experiência monstruosa com Maria de Lurdes Rodrigues temos direito aos delírios monstruosos de Nuno Crato. Sublinho apenas dois corolários destas monstruosidades.

O que Nuno Crato, na linha de Maria de Lurdes Rodrigues, veio dizer aos professores do ensino não superior é que eles são literalmente nada. Puros números que se cortam ou adicionam conforme as circunstâncias. Talvez os professores tenham contribuído para isso. Talvez os professores, ao julgarem que deveriam ter uma atitude de proximidade com a comunidade, de fusão com o meio onde ensinam, tenham esquecido aquilo que faz a força de outros grupos sociais, e aquilo que em tempos fez a sua força, tenham esquecido que o respeito nasce da gravitas e da distância. Foi-lhes pedido essa proximidade, foi-lhes exigida, e os professores, muitas vezes, não resistiram a esse canto da sereia. Mas sem a distância e sem a gravitas desaparece a imagem de dignitas, que é essencial ao desempenho da função docente. É evidente que o Ministério da Educação, por vezes em colaboração com os sindicatos, tudo fez para que essas antigas virtudes professorais fossem destruídas. As coisas foram de tal maneira longe que conseguiram erradicar uma percepção essencial: o professorado exerce, ao lado das funções de soberania, a mais importante função para a sobrevivência de uma comunidade. Imagine-se apenas um país em que não houvesse professores e sistema de ensino. Enquanto militares, corpos de segurança, pessoal do poder político e judicial têm funções soberania reconhecidas, os professores exercem-nas todos os dias ao construir a comunidade política dentro das escolas, mas há uma recusa óbvia em reconhecer o facto. Pelo contrário, o poder político parece necessitar sistematicamente da fragilização do professorado, da negação da sua efectiva importância política e do peso real na construção da sociedade. Nada disto tem a ver com a troika, claro. São puras opções ideológicas. 

O pior, contudo, não tem a ver com os professores. O que Nuno Crato veio dizer é uma coisa muito simples: os cidadãos que têm os filhos nas escolas públicas não contam para nada. São gente que não merece um investimento minimamente coerente e decente na formação dos filhos. Estes, obviamente, também não merecem seja o que for. Aliás, há uma coisa que desagrada sistematicamente a certas elites. É que as escolas públicas, apesar de todas as tropelias que sofrem, conseguem fazer chegar alguns filhos de gente que não conta às universidades mais importantes, ocupando lugares que deveriam ser, obviamente, daquela gente que conta. Há muito que o Ministério da Educação, objectivamente, se esforça para criar as maiores dificuldades ao ensino público e, assim, favorecer os grandes colégios privados. Nuno Crato parece ser o campeão desse desígnio. O que interessam esses alunos pé-rapado que têm de estar na escola pública? Podem ser amontoados em turmas enormes, dentro de organizações absolutamente tresloucadas, onde o funcionamento minimamente coerente e eficaz é impossível. Já não há qualquer pudor na luta social e os governantes não escondem de que lado estão nesse conflito.

Escolas e turmas monstruosas têm por finalidade fomentar um ensino monstruoso e produzir, do ponto de vista do saber e da cidadania, monstros. Parece que foi para isto que Nuno Crato quis ser ministro.

10 comentários:

  1. ... monstros ou escravos.

    Contundente e esclarecedor, o seu texto.

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    1. Muito obrigado. Para a consciência moderna a escravatura deveria ser uma monstruosa, mas parece ter deixado de ser.

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  2. Arrepiante, oxalá fosse ficção.
    Nem os momentos mais angustiantes do "Fahrenheit 451" provocam um sufoco semelhante ao que se sente por estes dias, e não não é o calor, à hora a que escrevo está fresco e mesmo assim falta o ar. O despudorado assumir do fosso social, a obscena e obsessiva vontade de o perpetuar, perante a passividade incrédula de todos os que não se agitam.

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    1. Estamos a construir uma distopia pior que a do Fahrenheit 451. O despudor não tem fim.

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  3. Texto lúcido. É tempo de se refletir, seriamente, sobre o que está a acontecer nas escolas portuguesas.É tempo de reconstruir a dignidade. Não será fácil, mas é possível. Parabéns pelo texto.

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  4. Que mais dizer, se concordo com o texto e os comentários? Ah, sim, existe algo de muitíssimo importante a dizer perante esta declaração de facto: não podemos deixar que isto aconteça, chegou a Hora de lutar, não?

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    1. Sabe, Maria, a palavra lutar ameaça transformar-se num significante sem significado. Julgo que há que inventar formas de agir que valorizem o comum sem negar o singular; fundamentalmente, seria bom que se inventassem novas formas de acção política, algo que não se apresentasse como uma confrontação, mas que deixasse claro a maldade de quem toma as decisões que está a tomar. O Gandhi foi muito inteligente. Mas não se trata de copiar as suas acções, mas de compreender uma forma diferente de agir. Mas julgo que isso não é possível devido às rotinas e aos velhos hábitos instalados em sindicatos e partidos fora do arco do poder.

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  5. Creio que essas nova sformas de agir já estão em maturação, algumas até florescendo aqui e ali...São um misto de muita coisa, desde a divulgação de textos de cr´tica e chamada de atenção como os seus, a acções de ruas como a dos enfermeiros subcontratados que se manifestaram na Rua Augusta oferecendo os seus serviços a quem passava e ao mesmo tempo divulgando o seu protesto e indignação (combate), aos laços negros nas escolas por cada professor que foi «dispensado», às assembleias, marchas e textos dos Precários Inflexíveis, às manifestações dos Indignados ( em Espanha muito mais poderosas do que cá e das quais divulgo sempre o máximo de fotografias e vídeos no FB--as tvs não as passam, claro--a todos os protestos organizados pelas populações locais pelos Tribunais e Centros de Saúde...mas será preciso mais, muito mais. E não deixar que o Verão e algum descanso nas praias nos desvie dessas formas de luta. A palavra é essa, luta, por muito que se tente esvaziá-la de sentido. Imagino um Setembro quente.

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    1. Por mim, dispenso qualquer mês quente. O calor dá cabo de mim. Falando a sério, veremos como as coisas vão evoluir.

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