segunda-feira, 23 de julho de 2012

A pátria literária

Josep Grau-Garriga - El Poder (1999)

Em todos os poderes humanos existe um ligeiro, delicado e quase imperceptível desprezo por aqueles que dominamos. Só podemos dominar inteiramente almas humanas, se conhecemos, compreendemos e desprezamos muito discretamente aqueles que são forçados a render-se. (Sandor Márai, As velas ardem até ao fim, p.46)

Há qualquer coisa de esquivo nos meus gostos literários. Nascido no sul da Europa, descobri que a minha verdadeira pátria literária não reside nos países do sul europeu (e o romance moderno nasceu em Espanha, com o Quixote), incluindo aí a França. As literaturas americanas, as do norte como as do sul, sempre tiveram para mim qualquer coisa de estranho. Há ingleses de que gosto bastante, para não falar dos russos (talvez, a literatura mais espantosa ao cimo do planeta). Mas onde me sinto em casa é quando leio a grande literatura da Europa central. Áustria, Alemanha, República Checa, os países que fizeram parte do Império Austro-Húngaro. Há nessa literatura qualquer coisa de decisivo e sombrio. A vida, mesmo romanceada, parece tingida de uma seriedade incomparável, como se houvesse consciência da irrepetibilidade de cada instante e essa irrepetibilidade fosse a marca de um destino que urge configurar antes que ele se nos imponha com a sua desordem.

O excerto que citámos do húngaro Sandor Márai poderia ser escrito no sul? Por exemplo, Agustina Bessa-Luís poderia dizer algo de muito parecido, mas haveria outra luminosidade nas suas palavras, uma exposição vinda da esfera do sentimento. No texto de Sandor Márai há uma claridade sombria. A sombra que vem do exercício da dominação e do desprezo discreto e subtil pelo dominado. A claridade trazida pela razão que ilumina o sentimento. Não se trata de expressar ou exprimir qualquer emoção, mas de mostrá-la no seu ser, de lhe trazer a luz da razão. O que Sandor Márai, no contexto em que se insere o excerto citado, está a mostrar é que em toda a amizade profunda e autêntica, como em todo o amor,  há, por parte de um dos amigos, uma dimensão de poder e de desprezo. Talvez seja esta luz da razão aplicada à vida que me faz sentir em casa quando leio os grandes romancistas da Europa central. Para mim o romance é a mistura de luz da razão e da sombra da vida, e é isso que encontro sempre nessa literatura, como se ela fosse o lugar onde razão e não-razão se encontram para celebrar casamentos mais ou menos felizes.

4 comentários:

  1. Boa noite JCM,

    Quanto à vertente literária, não me atrevo a comentar, apenas registo e aprendo.
    Já no que respeita ao exercício do poder, entendo que basta haver domínio para haver desprezo.

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    1. Boa-noite, JRD. O problema é se, os seres humanos, podem dispensar, mesmo na amizade ou no amor, uma relação de poder. O cristianismo veio dizer que essa relação é inaceitável, mas o cristianismo diz-nos o que o homem deve ser e não aquilo que ele é.

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  2. Boas tardes
    O seu texto pôs-me a pensar no fantástico e gratificante que é o facto de a Literatura nos devolver aquilo que a realidade nos vai retirando e que grandes leitores como o JCM vão partilhando. O seu comentário levou-me de volta à leitura desse livro que li há uns dois anos e de que retenho apenas o lado sombrio da existência. Agora vou lá buscar a luz. Obrigada por partilhar.
    Boas férias

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    1. Muito obrigado, Margarida. Igualmente para si. Ainda não acabei de ler o livro, mas a cada página lida aumenta o prazer de o ler.

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