21. In Paradisum
Afasto-me da pátria em
chamas, dos jardins cansados.
Matilhas de cães percorrem vielas
e rosnam,
Param num coreto vazio,
uivam às estrelas.
O ronco de uma sirene
perfura a noite,
Esburaca paredes e retine nos
ouvidos,
Tão surdos, os dos
espectadores adormecidos,
Ruínas metálicas na
amargura de um quarto vazio.
Deixar pairar a mão sobre a pele.
Os dedos iluminados, pássaros de erva e seda,
Navegam no império cego do teu corpo,
Traçam fronteiras, abrem caminhos,
Soletram mapas na textura do tacto,
Para, olhos fechados, sentirem a pulsação
A vibrar no fundo que há no fundo de ti.
Os deuses abandonaram-nos ao destino.
Como somos pobres e velhos, e a nossa carne,
Outrora bela, abre-se em escaras verminadas,
Sulcos de matéria em putrefacção.
Rios de sangue coagulado tingem o musgo
Vindo da floresta, parasita a crescer no soalho,
Pedra de fogo e mármore em decomposição.
A boca poisa em teus lábios, o dia amanhece,
E o sol mostra agora o caminho.
Desço e sucumbo na radiação solar,
Canto no sabor inquieto da tua respiração.
Tudo em ti resplandece e chama por mim.
Uma ave solitária poisa, um fogo no ventre,
Morde-te ao de leve a pele branca,
Escuta-te o murmúrio na rebentação da manhã.
As montanhas perderam o aço que as erguia,
São, nestes dias de inverno, ruínas, detritos,
Uma vida que se entregou tão cansada de cantar.
Sobem, pelos destroços das encostas, faces que
não sei,
Trazem bandeiras, arcos e flechas e cantam
canções,
Estranhas canções, deixam-me o coração amargo
E uma dor feroz no vazio dos intestinos.
Que dádiva haverá, pergunta-se o pássaro,
E dança e salta no ondear inquieto do teu ser.
Peregrino sem bússola em busca do santuário,
Fecha os olhos, inclina-se, sussurra orações.
Ajoelha-se, o viandante, na relva do púbis,
Saboreia erva a erva e escuta o rumor da terra
A nascer por dentro, nessa casa de sombra e âmbar.
Também eu falo de Atenas devorada pelas cinzas,
E de Roma tombada pela mão do bárbaro,
E de Jerusalém incendiada, sem Cristo nem Virgem,
E de tudo o que amei, agora um despojo inútil.
A cabeça pesa e a garganta secou de tanto gritar.
Quando chego a Lisboa, vindo pelo Tejo,
Vejo escombros, D. José pobre e refugiado numa
tenda,
E, sem resposta, pergunto ao destino pelo
Marquês.
Oiço gritos e trombetas e vejo bandos de anjos,
Transportam os mortos, tão pálidos e tão serenos,
Para o lugar vazio onde a sua morte os espera.
Um fôlego incendiado de mar no santuário,
O desejo oblíquo do teu gosto ardente.
Quieta, afastas as pernas na opulência do rito,
Chamas por mim e desenhas um caminho.
Levemente, na severidade da hora,
A língua, sonâmbula, entra na maré em chamas,
E extasiada saboreia cada segredo de orvalho,
E todos os incêndios de água sobre o mar,
E todas as inundações de fogo no bosque,
O infrutífero amor na exausta lareira crepita.
A matéria da vida, argamassa de carne, partiu,
E os carros passam negros na estrada magnífica.
Vão silenciosos e recatados, tremem suavemente,
Seguem sem destino, debandam, faúlhas do medo.
Nas ruas e praças, amontoa-se o carvão das horas,
E o exército dizimado corre e foge cabisbaixo.
Ao longe, estrondeiam morteiros, fogo de
artifício,
Ouvem-se cânticos límpidos que não conheço,
Sob pendões e bandeiras, não os amo.
Tudo se ilumina na secreta luz que nasce,
Os dias passados e as noites por dormir,
A água que golfa na avidez da nascente,
O sabor incendiado e o sexo andrajoso.
Assim subjugado, rendo-me e saboreio-te
E sinto todas as tuas cordas na orla do meu ser,
E quero, eterno, o paraíso que mana de ti,
O beijo trazido pela cratera ensanguentada,
A dor que nasce na solidão da minha boca.
Afasto-me em
delírio da pátria em chamas,
Entrego-me
às trevas com que me aguardas.
Abandonado
pelos deuses, sem dor ou prazer,
Ergo a taça
ao estéril Cupido, a morte deleita.
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Com In Paradisum termina a publicação de Missa Pro Defunctis, um ciclo de poemas escrito em Setembro e Outubro de 2011, constituído por 21 poemas. Uma meditação poética sobre a nossa situação actual, meditação que acompanha a estrutura de um Requiem na tradição religiosa católica. Ite, missa est.
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