terça-feira, 30 de março de 2021

O tempo do desejo e o da pandemia

Oscar Dominguez, Quelques mouvements du désir, 1937

Apesar do espantoso desempenho dos EUA no processo de vacinação contra a covid-19, as autoridades políticas, científicas e sanitárias estão bastante preocupadas com a emergência, no país, de uma quarta vaga da pandemia. Falam mesmo de ‘desgraça iminente’. O caso não se deve à falta de eficácia das vacinas, mas ao comportamento das pessoas. Ainda longe da imunidade de grupo, o que se exige é uma grande disciplina comportamental. Uso de máscaras e distanciamento social continuam a ser imperativos.

Mais uma vez se comprova que os países ocidentais deixaram de ter – se alguma vez a tiveram – disponível a disciplina de grupo como arma para enfrentar perigos colectivos, como é esta pandemia. Há uma enorme discrepância entre o tempo do desejo e o tempo da pandemia. O desejo surge perante a vontade como um imperativo que se quer realizar o mais rapidamente possível. O desejo de conviver com os outros e o desejo de voltar ao modo de vida anterior são investidos por uma grande urgência. O tempo do combate à pandemia – apesar da aceleração que tem tido – é muito mais lento. À urgência do desejo contrapõe-se a lentidão daquilo que permitiria criar condições seguras para a consumação do desejo.

O caso é agravado porque, numa sociedade de mercado, a competência de diferir a realização dos seus desejos é constantemente dinamitada pela própria sociedade. A necessidade de que os produtos sejam rapidamente consumidos, para que novos entrem no mercado, é uma forma de intensificar até ao paroxismo o desejo humano. O ideal da sociedade em que vivemos é que todos os desejos sejam consumados instantaneamente, mal emirjam a situação da sua não consumação torna-se insustentável. O mercado – e todos nós fazemos parte do mercado e dependemos dele – exige que assim seja. Percebe-se por que razão estão as autoridades americanas assustadas. Temem não ter mãos nas máquinas desejantes em que todos nos tornámos.

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