Henry Beerbohm - The Mirror of the Past
Mas se o pensamento pessoal não é o fundamento da identidade de um
indivíduo (se não tem mais importância do que um chapéu), onde está então esse
fundamento?
A esta busca sem fim trouxe Thomas Mann a sua contribuição importantíssima: pensamos agir, pensamos pensar, mas é um outro ou são outros que pensam em nós e agem em nós: hábitos imemoriais, arquétipos que, tornados mitos, passando de geração em geração, possuem uma força de sedução imensa e nos teleguiam a partir (como Mann diz) do «poço do passado». (Milan Kundera (1994). Os Testamentos Traídos. Edições Asa, pp. 16.)
A esta busca sem fim trouxe Thomas Mann a sua contribuição importantíssima: pensamos agir, pensamos pensar, mas é um outro ou são outros que pensam em nós e agem em nós: hábitos imemoriais, arquétipos que, tornados mitos, passando de geração em geração, possuem uma força de sedução imensa e nos teleguiam a partir (como Mann diz) do «poço do passado». (Milan Kundera (1994). Os Testamentos Traídos. Edições Asa, pp. 16.)
O «poço do passado» de que fala Mann é um outro nome para o conceito de tradição. Aquilo que somos somo-lo porque pertencemos a uma tradição. É nela que, de uma forma inconsciente, mergulham as nossas raízes. Mas esta ligação não é em primeiro lugar uma conexão cultural. Aquilo que somos, devemo-lo, já no estrato biológico, à herança genética. O ADN que recebemos dos nossos pais é uma ponte que, de geração em geração, nos liga ao fundo obscuro da humanidade, depois à animalidade e, por fim, enraíza-nos no próprio ser. O que cada um de nós é, ainda e só do ponto de vista biofísico, representa já uma incomensurável dívida para com os ancestrais e através deles para com o próprio ser, do qual tudo provém.
De certa forma, podemos então dizer que existe um substrato biofísico
da tradição. Esta não é um nada ou um mero conjunto de conteúdos que estejam
ali disponíveis para serem manipulados, sem mais. Do ponto de vista cultural, o
conceito de tradição reenvia-nos para essa ancestralidade, que, segundo Mann,
pensa e age em nós. Não somos sujeitos que possam começar o quer que seja sem
essa carga do passado. A língua que falamos, por exemplo, não a inventámos, não
a criámos, herdámo-la da comunidade onde nascemos. Aquilo que é válido para a
língua, vale para a cultura no seu todo, desde as regras de cortesia até às
normas morais.
As sociedades tradicionais viviam no culto dessa tradição. Isso não
significa que elas não se transformassem. A transformação, porém, era uma
resposta não contra a tradição mas uma espécie de readaptação da vida
comunitária aos princípios, muitas vezes obscuros, dessa tradição. Esta era uma
espécie de modelo arquetípico que tinha a finalidade de fornecer um horizonte à
existência dos homens e um fundamento significativo à sua identidade. O que
marca as sociedades modernas é a revolta contra a tradição. O moderno nasce
como oposição deliberada à tradição. Na modernidade, o imperativo é reconstruir
todo o mundo cultural a cada nova geração, cortar os laços com o passado. A
tradição, todavia, tem resistido e é ela que, apesar dos ataques do moderno,
permite a esse mesmo moderno reconhecer-se enquanto tal.
O que é absolutamente novo, nos dias de hoje, na cultura pós-moderna,
é o alheamento completo não só da tradição como da revolta moderna contra ela.
O mundo pós-moderno é o mundo do alheamento. O desenvolvimento tecnológico e a
forma como se pratica a ciência nos dias de hoje fizeram crescer uma
mentalidade onde reina a ilusão de se poder construir uma existência sem
qualquer conexão ao passado. A ligação vertical com os ancestrais está a ser
substituída pela ligação horizontal em rede. Ciência e tecnologia são dois
motores essenciais de uma cultura baseada no momento, de uma cultura niilista.
O curioso é que a grande maioria dos cientistas não percebe o efeito do seu
próprio trabalho.
Como a ciência para a sua aprendizagem não necessita de um estudo dos
seus processos de evolução históricos, como ela é apresentada desligada daquilo
que, do ponto de vista filosófico, está no seu fundamento, a praxis científica
e o desenvolvimento tecnológico nela assente são dois factores de dissolução da
racionalidade e da conexão com a tradição nas sociedades de hoje. O papel social da ciência e da tecnologia não é a produção de
conhecimento e de bens úteis para a humanidade. Esse é o invólucro onde se
esconde a sua acção dissolvente das tradições e a ilusão de se poder a cada
momento produzir o novo. Por muito que isso doa à racionalidade de muitos
cientistas, na sua actividade esconde-se a mais violenta irracionalidade: a de
roubar o fundamento do sentido que estrutura e articula as identidades humanas
e a de ser dinamizadora do alheamento pós-moderno. (averomundo, 10/07/2007)
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