quarta-feira, 31 de dezembro de 2025

Pier Paolo Pasolini, Mamma Roma


O segundo filme de Pasolini, Mamma Roma, foi realizado em 1962 e é tido como uma continuação da vaga do neo-realismo cinematográfico italiano. Se pela pertença social das personagens – o subproletariado – o filme ainda se possa inscrever nessa corrente, a sua natureza simbólica e a própria estética – com o recurso a enquadramentos estáticos e frontais, como se quisesse suspender o tempo e aniquilar o movimento no espaço – apresenta uma dimensão marcadamente contemplativa, de tonalidade sacra, deixando perceber que o realizador se estava a afastar dos cânones neo-realistas, exibindo uma poética simbólica, para encenar não uma epopeia das classes baixas, mas uma tragédia regida, como nas tragédias gregas, pela mão invisível do destino. O filme centra-se em duas personagens, Mamma Roma, uma prostituta, e o seu filho Ettore, a quem ela pretende oferecer uma vida que esteja para além da marginalidade, uma vida burguesa feita de respeitabilidade.

O filme constrói-se como uma resposta à questão de saber se é possível fugir do lugar de onde se vem, se o trabalho é suficiente para fazer funcionar o elevador social, numa Itália que se moderniza, onde os saloios – na legendagem portuguesa – aspiram a tornarem-se citadinos. A personagem Mamma Roma representa, na verdade, o padrão de uma mentalidade burguesa, apesar da sua condição. Com o dinheiro poupado na sua actividade de prostituta e com a libertação do compromisso com o proxeneta que a explorava, monta uma banca de venda de legumes num pequeno mercado em Roma. Isso permite-lhe ter uma casa nos arredores da grande cidade e trazer o filho, um adolescente a entrar na primeira juventude e que desconhece a actividade da mãe, para a cidade, sonhando-o como um citadino que pela força do trabalho haveria de singrar na vida e alcançar a desejada respeitabilidade burguesa, que ela, de certo modo, sonha também para si.

Contudo, as barreiras sociais são muito menos porosas do que o desejo da mãe. Mesmo numa época de grandes transformações sociais e de modernização, a dinâmica social parece libertar os indivíduos dos campos não para os emancipar, mas para os prender nos subúrbios, onde os pequenos saloios se transformam em pequenos delinquentes, uma juventude que não estuda e não trabalha, acorrentada às dinâmicas culturais que se estabelecem naqueles bairros de classes baixas. Pasolini não torna patente os conflitos de classe que, muitas vezes, animam a estética neo-realista, mas revela os mecanismos que estruturam a existência daqueles estratos sociais. Fá-lo de uma forma crua, sem projectar nelas qualquer papel redentor. Pelo contrário, se a temática da redenção é abordada é ao nível do indivíduo – em Mamma Roma e na imagem em cruz do filho no hospital – e não da classe social.

Em Mamma Roma – uma sublime interpretação de Anna Magnani – Pasolini constrói um heroína cujo arquétipo repousa, em primeiro lugar, em Antígona. A mesma força interior, a mesma determinação na acção, a mesma divisão entre duas leis que se confrontam. Está dividida entre a lei maternal, a lei do sangue, que a leva a desejar uma vida boa, segundo os cânones burgueses, para o filho, e a lei do grupo social a que pertence e que a prende, uma lei que construída pela força do passado. É a impossibilidade de compatibilizar estas duas leis que torna o filme uma tragédia. O desfecho manifesta a força do destino e as ilusões modernas de ascensão social. Estamos longe de uma visão optimista da modernidade. Pelo contrário, o que é sublinhado é a derrota da liberdade – dessa capacidade de escolher e fazer um caminho em conformidade com a razão – pela estrita necessidade, com a sua natureza mecânica, que despoja os indivíduos do poder de agir tornando risível o livre-arbítrio. Contudo, a risibilidade do livre-arbítrio abre-se para uma ambiguidade estrutural do filme: a relação com o sagrado. Não apenas na imagem de Ettore, no hospital, preso em cruz à cama, mas a do olhar final de Mamma Roma fixado na cúpula da basílica de S. João Bosco. Isto introduz, como possibilidade de leitura, a dinâmica da Graça. O filme não resolve se o que falta à mãe e ao filho é a abertura à Graça; mas deixa a sugestão pairar como uma possibilidade efectiva. E isto permite ler a figura de Mamma Roma, perante o destino do filho, crucificada pela tensão entre o arquétipo inicial de Antígona e o final de Virgem Maria.

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