Publicado em 1868, Mário
– Episódios das Lutas Civis Portuguesas é o único romance do médico e
professor de Higiene, na Universidade de Coimbra, António de Oliveira da Silva
Gaio. João Gaspar Simões integrou-o, nos anos setenta do século XX, numa
colecção denominada Grandes Esquecidos
da Editora Arcádia. Se é verdade que A. da Silva Gaio é um autor esquecido – quem
lerá hoje o seu romance? –, talvez seja um exagero considerá-lo um dos grandes
da nossa literatura. Uma literatura nacional, contudo, não se faz apenas dos grandes
nomes, daqueles que os críticos e os programas escolares canonizam. Outros
autores existem que, apesar de não serem – e para falar só do século XIX – um Eça,
um Garrett, um Camilo ou um Herculano, merecem ser lidos e merecem ser
disponibilizados senão em livro de papel pelo menos em livro digital. Silva
Gaio seria um desses autores.
Mário, como alguns
estudiosos assinalam, está a meio caminho entre o romance histórico e o romance
de actualidade. Os factos históricos que representam o cenário onde se
desenrola a acção romanesca medeiam entre 1828 e 1834, e dizem respeito à
guerra civil que foi desencadeada após as Cortes de 1828 terem aclamado D.
Miguel como rei de Portugal. Portanto, a publicação do romance é feita 40 anos
após o começo do conflito, o que significa que os factos, as lutas entre
liberais e absolutistas, ainda estariam presentes na memória e na vida de muita
gente à data da escrita e publicação do romance. É neste horizonte que Silva
Gaio cruza uma história de amor e um conflito político, cujas intrigas,
tecidas de múltiplas peripécias, se misturam e encontram desenlaces intimamente
ligados. A difícil vitória da liberdade foi também a difícil vitória do amor ou
vice-versa.
Um dos aspectos centrais é o carácter eminentemente político
e partidário do narrador. Este não é um observador neutro que conta uma
história cujo destino lhe é indiferente. Pelo contrário, o narrador toma
partido pelos defensores do liberalismo, não lhe sendo indiferente o desfecho
da guerra civil. Há um claro e procurado subjectivismo na apresentação dos
factos narrados. Mais do que a apologia de um espírito liberal, tal como ele é
entendido hoje em dia, encontramos a defesa da liberdade e a execração dos
despotismo absolutista. Para tal, as personagens centrais são marcadas com
vincos fortes e claros, na verdade efectivas idealizações do mal e do bem. O
freire da ordem de Malta, Jorge Pinto, é um absolutista empedernido, um cacique
beirão, corajoso, mulherengo, autoritário e despótico, com uma capacidade
manipulatória servida por uma inteligência aguda. As personagens do lado
liberal também são nítidas, sem claros-escuros. O padre Maurício é um santo
homem, Teresa é bela, inocente, culta e virtuosa, e Mário é um homem de
carácter, corajoso e fiel à liberdade. Durante o tempo da narrativa, nenhuma das personagens atraiçoa, por um instante que seja, a figura ideal que representa.
O romance apesar de ser construído a partir da apreciação
subjectiva dos factos pelo narrador, não nos dá uma visão funda da
subjectividade das personagens, dos seus dramas internos, das suas incertezas e
dúvidas. Elas são, na realidade ideias que se confrontam e combatem, tal como
no terreno os exércitos liberais e miguelistas se combatiam. Por outro lado, a
obra de Silva Gaio consegue dar a ver ao leitor um momento da nossa história,
das visões políticas em confronto, bem como das estruturas sociais que dão
forma ao Portugal da época. Existe mesmo uma longa digressão sobre essa história. Talvez o mais surpreendente – mas é possível que o
não seja para os historiadores – resida na figura do padre Maurício. Normalmente,
tem-se a impressão de que o clero e a Igreja estavam claramente conluiados com os absolutistas, e tinham uma acção deletéria das aspirações
à liberdade. Silva Gaio dá-nos a ver um outro clero, não apenas bondoso mas
amigo da liberdade e aberto aos novos ideais. De certa
maneira, esta visão da Igreja Católica perante os acontecimentos de 1828-1834
não deixa de ter notáveis semelhanças com a visão que se tem da mesma Igreja
durante o Estado Novo de Oliveira Salazar. Se a inocência do amor entre Teresa
e Mário nos faz sorrir hoje em dia, a ambiência política descrita pelo romance
não só ajuda a compreender aquela época histórica, como nos permite
perceber alguma coisa da nossa história mais recente, tornando patentes certas linhas de continuidade.
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