Em Tons Verdes em
Fundo Escuro (1946), quarto romance da Crónica
da Vida Lisboeta, Joaquim Paço d’Arcos analisa dois mundos que têm origem
fora do espaço social predominante neste ciclo romanesco, a aristocracia e a
alta burguesia financeira, que dominavam a sociedade lisboeta dos anos quarenta
do século passado. Com Helena Medeiros é retratado o mundo da pintura, da
relação estética com a realidade. Com Moura Teles, o do advogado provinciano
que chega a Lisboa para triunfar, jogando calculadamente cada uma das peças que
a vida lhe coloca no tabuleiro. Obsequioso com os poderosos e frio e destituído
de piedade ou princípios com os outros. A figura de Moura Teles – que num
romance posterior chegará a ministro do governo de Salazar – é a imagem acabada,
sem contemplações, daquilo a que, na nossa tradição literária, se dá o nome de videirinho.
Estes dois mundos cruzam-se através da sexualidade. Grande
parte do romance está sob a égide da relação irregular entre Helena Medeiros e
Moura Teles, que mantêm um caso amoroso. Essa situação, apesar de nenhum ser
casado, no ambiente fechado, provinciano e marcadamente machista, de Lisboa é
uma sombra que se derrama sobre a pintora, embora seja, para Moura Teles, um
motivo de promoção como homem experimentado e sexualmente vivido. A situação de
Helena Medeiros é bastante frágil. A mãe – uma espécie de voz da opinião
pública – não lhe perdoa a ousadia e, ressentida pela situação familiar, onde o
marido, um aventureiro colonial, sempre deu mais atenção, ainda que longínqua,
à filha do que a si mesma, não perde ocasião para lhe dar uma leitura negra do
seu estado. Para a mãe, a situação de Helena não é a de uma artista a quem se
permite aventuras em nome do sublimidade da arte, mas a de uma mulher por conta
do advogado. A obscuridade que paira sobre a vida da pintora é reforçada por
esta ao ocultar a situação ao pai.
O romance começa com uma intervenção de Moura Teles num
negócio em que está envolvida a sociedade colonial do pai de Helena, embora na
altura ele não o saiba. Ele manobra a situação, enquanto advogado, de forma a
que a empresa perca o que lhe resta e seja obrigada a vender os terrenos, em África,
para um consórcio de que ele faz parte. Um golpe duro sem qualquer contemplação
pelos perdedores, aliás seus clientes. Esta entrada em cena de Moura Teles
simboliza todo o seu comportamento, nas diversas esferas de acção. Conhecedor
da lei, sabendo explorar os pontos obscuros e as fragilidades humanas, o
advogado provinciano insinua-se assim tanto entre as pessoas de dinheiro, como
o Banqueiro Costa Vidal, como entre a aristocracia decadente, sem poder nem
dinheiro, mas com nome e passado, então bens ainda de grande valor no mercado
social português.
A relação entre a pintora – que tinha estado em Paris e que
voltara a Portugal com a invasão alemã – e o advogado resulta de um acaso e não
de uma atracção amorosa entre ambos. Ela deixa-se levar por uma certa inocência
e ele pelo desejo e pelo cálculo. Na verdade, no ambiente intelectual de
Lisboa, Helena Medeiros atraía os homens e tê-la como amante era motivo de
valorização nesse tráfico de comparações, que os homens são incapazes de deixar
de fazer para se assegurarem da respectiva virilidade. O resultado foi aquele
que era expectável. Moura Teles nunca deixou de manobrar para obter um
casamento que lhe permitisse outros voos. E quando descobre a sua oportunidade
junto de uma jovem aristocrata desiludida no amor, não hesita em jogar a sua
sorte. O videirinho provinciano, bem relacionado com o mundo do dinheiro, é um
óptimo partido para o pai arruinado da sua futura mulher. O casamento de Moura
Teles é um belo contrato comercial. O sogro ganha a possibilidade de resolver
os seus problemas financeiros e ele adquire um estatuto social que não estaria,
de outra forma, ao seu alcance.
Helena depois de uma exposição com resultados frustrantes,
de um conflito com o pai e cansada dos limites da vida lisboeta, acaba por
abandonar o país para voltar a Paris, já libertada da presença alemã. Como
noutros romances do ciclo, o autor interroga-se sobre a questão da inocência e
da culpa e retrata, com precisão, a falta de escrúpulos, a habilidade rasteira,
a falta de nobreza, que se tornaram a condição necessária para o triunfo no
país cinzento, paroquial que Portugal então era. A grande personagem do romance,
delineada com precisão e brilho, é Moura Teles, um exemplo claro daqueles que
tratam os seus semelhantes não como seres dignos de respeito, mas como meros
objectos ao serviço dos seus interesses. Através do advogado provinciano e
videirinho é a sociedade de então que Paço d’Arcos torna patente ao leitor.
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