Se em Ana Paula,
primeiro romance do ciclo Crónica da Vida Lisboeta, Joaquim Paço d’Arcos
retrata a resistência da moral apolínea, encarnada pela protagonista, aos
avanços de Eros, em O Caminho da Culpa,
é o Eros vitorioso que se manifesta em toda a sua amplitude e em todas as suas
consequências. A fortaleza das convenções sociais, da moral comum e da
tradição, as máscaras sob as quais a moral apolínea impõe o seu jugo aos
impulsos eróticos, mostra-se impotente para conter o fluxo do desejo que essa
mesma moral visa domesticar e ordenar.
Seria uma leitura pobre ver no romance a mera tematização do
adultério e do suicídio, tomados na sua dimensão meramente moral e social. O que nos é mostrado é a tensão entre o desejo e a
convenção, é a luta entre o ser e o dever. Eros desafia não apenas as convenções sociais mas também, e fundamentalmente, as
convenções pessoais e psicológicas, para revelar a realidade crua. O tempo da narrativa é o dos anos quarenta
do século passado. A obra foi publicada em 1944 e nota-se nela a percepção de
que a guerra, que então grassava pelo mundo, estava a deixar de pender para o
lado alemão. Este tempo de convulsão exterior é rebatido numa Lisboa em paz, onde
se pode especular sobre o desígnio dos deuses da vitória, sem que os
portugueses tenham de se confrontar com a dura realidade da violência e da
destruição.
É nesta ambiência morna que os negócios prosperam e as
ambições humanas, das classes altas de Lisboa, encontram terreno para a sua
concretização. É aí que se movem, como se não lhe pertencessem, o médico Paulo
de Morais e a aristocrata Eugénia de Macedo. O médico – que seria, do ponto de
vista ideológico, um comunista, embora não praticante – tinha, devido à sua
reputação, por clientela os sectores mais elevados da sociedade lisboeta e era
entre estes estratos sociais que se movia. Íntegro como pessoa e com um
casamento ordenado, fecundo e feliz. Eugénia dedicava-se a uma vaga organização
de caridade e mantinha um casamento convencional, do qual não havia filhos, mas
que ela nunca pensara pôr em causa ou encontrar, para a monotonia da vida
conjugal, uma compensação numa aventura extramatrimonial.
É a aproximação dos dois, por motivo de doença do pai dela, que
desencadeia o violento ataque de Eros. Mais do que o adultério e a destruição dos
casamentos, o que está em causa é a tensão que o desejo provoca em dois seres
tão racionais e tão submetidos a um modo de vida apolíneo, com a submissão às
regras que a razão ordena na vida social e pessoal. Não é a instituição social
do casamento que o impetuoso Eros atinge, mas a pessoa de cada um dos amantes,
a vida dela e a consciência dele.
Como é norma na tradição ocidental, Eros está ligado aos
impulsos de vida e de morte e são esses impulsos que tomam corpo em Eugénia.
Ela que sempre desejara um filho, estava agora grávida do médico. Por outro
lado, os impulsos de morte manifestam-se no surgimento de um cancro no seio. O
ponto central do romance joga-se aqui. Paulo de Morais sabe que a doença de
Eugénia é mortal, não tendo sido ela, por culpa própria, operada a tempo, sabe
que o seu amor não tem futuro e perante a tragédia da mulher amada e a vida que
tem pela frente, opta por não abalar nenhum dos casamentos. Apolo estendeu-lhe
a mão e ter-lhe-á parecido uma bravata inútil romper as aparências e as
convenções sociais. Do outro lado, porém, Eugénia está dilacerada entre a morte
que a chama e a vida de um filho – o qual se nascesse abalaria o seu casamento –
que tinha surgido no tempo e no espaço errados. O suicídio é a solução do
dilema que, literalmente, lhe rasgava a carne.
O romance, na verdade, é uma reencarnação da velha tragédia
grega, marcada pela tensão entre o apolíneo e o dionisíaco, entre as forças da
ordem e as forças do caos. Paulo de Morais e Eugénia de Macedo, ao
libertarem-se do convencionalismo das suas vidas, que fazia deles marionetas
dos respectivos papéis sociais, submeteram-se a um senhor mais poderoso e mais
impiedoso. As forças dionisíacas levaram para a morte a parte mais fraca, Maria
Eugénia, e, apesar do recurso à razão apolínea, abriram uma brecha na
consciência do médico perante a hesitação entre o amor sem destino e a convenção
da vida respeitável de um médico das classes altas, preocupado com o destino
dos desvalidos deste mundo. Com o suicídio dela e a hesitação dele, Eros tornou patente a crueza da realidade e, como é normal, Diónisos e Apolo obtiveram um empate.
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