Foi só agora que cheguei à leitura de Joaquim Paço d’Arcos
(1908-1979). Não fazia parte daquele grupo de escritores tidos por referência,
apesar de ter sido bastante lido nos anos 40 e 50 do século passado. Visto como
próximo do Estado Novo, no qual foi, entre 1936 e 1960, chefe dos Serviços de
Imprensa do Ministério dos Negócios Estrangeiros, isso não terá ajudado, numa
época em que grande parte dos escritores mais importantes estavam do lado da
oposição, a que o seu nome persistisse na memória. Também o seu opúsculo A Dolorosa Razão duma Atitude (1965),
onde se demarca da Sociedade Portuguesa de Escritores, da qual era Presidente
da Assembleia Geral, quando esta atribui o prémio de Novelística a Luandino
Vieira (preso político acusado de terrorismo), terá contribuído para o seu
relativo apagamento no panorama literário nacional.
Esta rasura do autor, porém, parece-me claramente
injustificada. O ciclo romanesco Crónica
da Vida Lisboeta, composto por seis romances (Ana Paula, Ansiedade, O Caminho da Culpa, Tons Verde em Fundo Escuro,
Espelho de Três Faces e A Corça
Prisioneira), é uma obra de grande fôlego e cuja leitura é essencial para
perceber o país entre os finais dos anos 30 e meados dos anos 50. Do ponto de
vista literário, a leitura ordenada do ciclo mostra que o escritor vai
crescendo de um romance para o outro. Os enredos vão-se tornando mais
complexos, as personagens mais ricas e a análise psicológica e social mais
subtil. A própria linguagem, que no primeiro romance soa como levemente
anacrónica, talvez ainda presa aos costumes da época, sofre uma evolução
modernizadora no decurso dos outro romances.
A sociedade lisboeta retratada é a da aristocracia, em fase
de decadência, e a da alta burguesia financeira, tendo como pano de fundo o
regime do Estado Novo. O retrato destas classes é impiedoso. Um mundo de
interesses, de traições, de patetas emproados e videirinhos impiedosos e
loquazes. O retrato irónico das classes altas não pode deixar de contaminar o
próprio regime, com o seu provincianismo. Ao mesmo tempo, percebe-se, através
destes romances, a acção das oposições, tanto dos reviralhistas republicanos,
como dos monárquicos saudosos do Rei e, acima de todos, do próprio Partido
Comunista. Sobre todos este figurantes do drama nacional daqueles tempos
abate-se um olhar penetrante e irónico, uma visão crítica e,
surpreendentemente, descomprometida e livre. A leitura destes romances de Paço
d’Arcos é fundamental para compreender uma certa Lisboa – e um certo Portugal –
de que o país actual, muito mais do que pensamos, é herdeiro e continuador.
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