Há um poema de Jorge de Sena, escrito em 1971, que começa com
a seguinte estrofe: “Passando onde haja
túmulos / - e há pó de humanos sempre onde se passe - / quanta maldade jaz ali
dispersa / pronta a ser respirada por outros homens / que a têm na carne como
herança dela: / quanta traição mesquinha range os dentes / e faz as suas contas
de futuro: quanta vileza ainda se espoja em raiva / de não ter sido uma vileza
inteira. / E é isto a humanidade.” ( J. de Sena, Exorcismos, 1972) A maldade é a mais persistente das heranças
humanas. O cristianismo, na sequência do judaísmo, fê-la nascer no advento do
próprio Homem, naquilo que ficou conhecido pelo pecado original. Esse momento
simbólico abriu caminho para que, a cada instante, um qualquer Caim mate um
qualquer Abel.
Durante muito tempo, na infeliz história da nossa espécie, a
violência e a maldade foram respondidas com violência e maldade, muitas vezes
acrescidas exponencialmente. A partir do século XVIII, com o Iluminismo, o
mundo ocidental começou a moderar as suas respostas a essa violência e a essa
maldade. Direitos constitucionais e códigos penais civilizados tiveram o
inesperado efeito de ir reduzindo a violência e o mal nessas sociedades. Não
devemos, contudo, esquecer as palavras do poeta. Temos a maldade na carne como
herança. E a maldade que habita a carne de qualquer cidadão pacato é suficiente
para, num tempo como aquele em que vivemos, lhe fazer perder a cabeça e, ao
mergulhar a sua voz na da turbamulta, pôr em causa os princípios civilizados
que desde o Iluminismo temos vindo – por vezes, com trágicos recuos – a
construir.
Quando escutamos a voz do povo – e hoje em dia a voz do povo
está nas redes sociais – temos o dever de ficar bastante preocupados. Com
frequência, demasiada frequência, vêem-se ataques raivosos aos principais
pilares da vida civilizada, pressente-se um desejo de destruição daquilo que
foi codificado sob o nome de direitos humanos, observa-se, mesmo num país
pacífico e de baixa criminalidade como o nosso, uma pulsão letal para a
vingança, para um justicialismo primário e perigoso. Esse mal que habita a
nossa carne está cansado de estar contido, de ser obrigado a refrear a sua
natureza e está a tomar conta das pessoas. A voz do povo é a voz de Deus, diz
um velho provérbio tão ao gosto do senso comum. O senso comum, por norma,
engana-se. A voz que se escuta não é a de Deus. É a voz desse mal que habita na
nossa carne, é a voz do diabo, cuja língua se está a soltar.
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