A crise que atinge, neste momento, a esquerda na sua
globalidade, e que se manifesta, no caso português, em ter deixado de contar
para qualquer revisão constitucional, não é um problema conjuntural, mas tem
todas as características de ser uma doença estrutural. Não se trata de uma
fatia de eleitores, não particularmente numerosa, que oscila entre o
centro-direita e o centro-esquerda e que, nas últimas eleições, se inclinou um
pouco para a direita. Trata-se de uma grande debandada, tendo os partidos de esquerda,
entre 2015 e 2025, perdido quase 40% do seu eleitorado, o equivalente a 20% do
eleitorado global. Estes números indiciam que a visão da esquerda para a
sociedade – ainda que multifacetada – deixou de atrair os eleitores. A crise é
estrutural porque as concepções ideológicas e políticas da esquerda perderam
ancoragem em parte substancial do eleitorado.
Há dois traços ideológicos que são fundamentais para
compreender o que se passa. Em primeiro lugar, a emergência do que se pode
chamar de identitarismo: a preocupação com a afirmação de uma identidade nacional. Em
segundo lugar, a descrença nos mecanismos colectivos para resolução de
problemas dos indivíduos. Em 2015, o Chega não existia e, em 2019, valia 1,3%.
A esquerda não percebeu o que se estava a aproximar, apesar dos múltiplos
exemplos vindos de fora. Presa ao cosmopolitismo dos socialistas e ao internacionalismo
de bloquistas e comunistas, ficou cega para um problema que nem pensava que
existisse. Pior: não se vislumbra como poderá encontrar um caminho para lidar
com a atracção dos eleitores pelo soberanismo identitário, que é, agora,
bandeira tanto do Chega como do PSD e do CDS.
Se o identitarismo é problemático para a esquerda, o
cepticismo perante os mecanismos colectivos para resolução de problemas é
devastador. Aquilo a que se chama, comummente, esquerda nasceu e cresceu fundado
na crença de que as soluções colectivas – revolucionárias ou reformistas –
seriam o modo mais razoável para as pessoas melhorarem as suas vidas. Essa
crença foi abandonada pelos eleitores, até por muitos, se não a maioria, dos
que votam à esquerda. Os eleitores, ao abandonar a esquerda, escolheram dois caminhos:
uma minoria converteu-se ao individualismo; a maioria, porém, procurou e
procura um salvador, alguém que lhe resolva os problemas que nem o Estado, nem
as lutas colectivas, nem a própria pessoa consegue resolver. A crise da
esquerda é estrutural porque a esfera ideológica em que o eleitorado se passou
a mover é completamente adversa aos valores e à tradição dessa esquerda.
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