Eduardo Gageiro - Álvaro Cunhal
Descobri esta fotografia de Álvaro Cunhal, atribuída a Eduardo Gageiro, no Aventar. Há dias que ela me assombra, como se nela houvesse alguma coisa de fantasmático. Melhor, como se nela estivesse inscrita uma incongruência. A fotografia, segundo notícia de o Sol, consta de uma Fotobiografia - que não conheço - de Álvaro Cunhal lançada pelas Edições Avante, julgo que pela altura do centésimo aniversário do nascimento do líder histórico dos comunistas portugueses. A fotografia é, ao mesmo tempo, fascinante e perturbante, como disse. Compreende-se a intenção dos editores: glorificar o antigo chefe e humanizá-lo. A foto faria parte deste processo de humanização, de torná-lo menos angelical e mais próximo do homem comum. A mensagem seria esta: Cunhal, apesar da sua superioridade política e moral, não deixava de ser um homem como os outros, até bowling jogava. Mas a fotografia atingirá esses objectivos. Melhor: se ela atinge esses objectivos, não trará danos irremediáveis?
Olho a foto e o que vejo é bem diferente de uma mera humanização da personagem. O impulso é para relacionar a experiência à ideia de inquietante estranheza (das Unheimliche). Não tanto porque daquilo que é familiar surja aquilo que aterroriza, mas porque dessa familiaridade com uma certa imagem de Álvaro Cunhal se solta, através da ritualização presente na foto, uma outra realidade, a qual contamina por completo o que, na vida política portuguesa, se consolidou como a presença pública do antigo dirigente comunista. Na foto está toda a seriedade que, na sociedade portuguesa e no combate político, caracterizou Cunhal. Esta seriedade, porém, está concentrada na irrelevância de um jogo de bowling, de um divertissement, tomando este o sentido dado por Pascal, de uma prática de esquiva à realidade. Em vez de uma suposta humanização glorificadora, a qual serviria para reforçar as opções políticas de Cunhal, a foto contamina a actividade e as opções que foram as suas. E contamina-as levando o espectador a questionar-se se elas não foram, em última análise e em analogia com a fotografia, um divertissement, o seu divertissement privado. A sua prática de esquiva à realidade do mundo. Estranha fotografia esta. Talvez Cunhal gostasse que ela nunca tivesse sido publicada. Talvez.
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