Depois de aqui ter escrito sobre as colecções Cow-Boy, 6 Balas e Fúria de Bravos, termino a série com a colecção Gatilho, também ela editada pela Agência Portuguesa de Revista e com o mesmo formato das outras três. Tomemos a própria designação da colecção. Gatilho é ao mesmo tempo uma metonímia (ou sinédoque) e uma metáfora. Metonímia pois toma o todo, a pistola, pela parte, o gatilho. Metáfora porque o dispositivo do objecto material está no lugar de um outro dispositivo, o da lei justa.
Comecemos, então, pelo gatilho. Este desencadeia o processo pelo qual a arma dispara a bala. A metonímia (ou sinédoque), ao tomar a parte pelo todo, acaba por sublinhar o elemento activo do objecto. A acção que é desencadeada é uma acção violenta, na qual se supõe como objectivo a morte de alguém. Estamos num universo onde a violência tem um lugar central na vida de uma comunidade. O que está em jogo, tanto quanto me lembro, neste tipo de historietas que eu li nos anos sessenta do século passado, não é uma apologia da violência, da desordem e do caos. Pelo contrário.
Isso torna-se compreensível se se considerar o carácter metafórico do gatilho. Ele representa a lei, uma lei moral que luta para se impor e fazer respeitar. O cenário comunitário destas histórias tem, por norma, uma de duas características. Ou se está numa comunidade onde a lei e o direito ainda não chegou e onde a única lei é a da violência, de uma violência consubstanciada na destreza do uso da pistola, ou se está numa comunidade onde existe formalmente um estrutura legal e instituições policiais e jurídicas, mas estas estão sob o domínio de interesses particulares que submetem o bem comum ao interesse privado de um grupo de malfeitores.
O pistoleiro - aquele que possui a destreza no manejo da arma - bom, perante a ausência de lei ou a sua corrupção, vê-se obrigado a repor a justiça e com ela a legalidade e a ordem jurídica neutra e universal. A violência que está simbolizada no gatilho nunca é gratuita. Opõe à violência do mal a violência que procura repor a justiça e o bem. Este tipo de narrativas, por ingénuas que sejam, têm o condão de tornar claro que toda a ordem repousa na violência. Tomam uma comunidade, numa situação extrema, para desocultar os processos de violência com que ela é tecida e que são necessários para a manter dentro da ordem e da justiça.
Todas estas historias, onde a lei do gatilho faz triunfar a moral, assentam em duas crenças básicas. A primeira diz-nos que a imposição - ou a reposição - da ordem moral do mundo se deve à acção singular e não a uma revolução colectiva. A ordem vem pela mão de um herói - o pistoleiro bom - e não pela acção de uma comunidade consciente e activa. O leitor precipitar-se-á se pensar que isto é uma apologia do individualismo burguês das sociedade capitalistas. Precipitar-se-á se pensar que este tipo de histórias são uma defesa da iniciativa privada tal como é concebida pelo liberalismo moderno. A singularidade do herói é uma estrutura arcaica muito anterior ao advento do liberalismo. De certa maneira, todos estes pistoleiros bons são reencarnações de Ulisses, o herói de Homero que chega a casa e mata os pretendentes da mulher, repondo a justa ordem do mundo.
A segunda crença destas histórias assenta na convicção de que o pistoleiro bom, a reencarnação popular de Ulisses, vencerá os pistoleiros maus, que a ordem justa e boa triunfará sobre a desordem ou a ordem pervertida pelo interesse privado. No fundo, são uma reprodução da cosmovisão cristã, na qual o bem, o Cristo triunfante, esmagará o mal, apesar deste parecer dominar devido à acção do príncipe deste mundo. Dito de outra maneira, a crença no triunfo da ordem justa sobre a desordem e a ordem perversa é uma questão de fé.
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