Zao Wou-Ki - 10-2-76
Talvez porque o mundo que existe à sua volta se move de uma forma desarmónica e ele continua a esperar descobrir nele um desígnio, uma constante. Talvez porque ele próprio sente que avança levado por impulsos não coordenados da mente, que parecem não ter nada que ver uns com os outros e que são cada vez mais difíceis de fazer enquadrar num qualquer modelo de harmonia interior. (Italo Calvino, "Palomar no jardim zoológico - A corrida das girafas")
Há dias em que nos sentimos como Palomar, a personagem de Calvino, e os nossos pensamentos não são muito diferentes daqueles que ele sente perante a deselegante corrida das girafas encerradas no jardim zoológico. A nossa perplexidade não é, nessas horas, idêntica à do prisioneiro da caverna platónica que, ao soltar-se do cativeiro, descobre um outro mundo harmonizado pela presença benfazeja da Ideia de Bem. O homem que sai da caverna descobre que aquilo que ele via não era mais que uma projecção sombria de uma princípio de harmonia. As sombras que, enquanto prisioneiro tomava por realidade, não passavam da aparência de uma realidade efectiva.
Quando somos tomados pelo complexo de Palomar, chamemos-lhe assim, a nossa descoberta é bem outra. Para lá das sombras, aquilo que tomamos por real na vida quotidiana, não há qualquer princípio ordenador benfazejo e propiciador de harmonia, um princípio que nos iluminaria se o descobríssemos. O que há é uma desarmonia cada vez mais intensa, um caos sem qualquer constância, desígnio ou ordem. Tanto o mundo como nós, os sujeitos racionais, não passamos de sombras, mas essas sombras não ocultam a luz e a ordem, mas as trevas e a desordem. Este complexo, contudo, não implica a conclusão de que tudo é absurdo e que o desespero é a única saída para o ser racional. Esta desordem e este caos solicitam-nos o esforço contínuo de dar sentido e ordem ao que não tem sentido nem ordem. E essa tarefa tem o condão de nos ocupar desde que nascemos até à hora da nossa morte. E essa não é a menor das vantagens de tal exercício.
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