Vincent Van Gogh - Praia de Scheveningen com tempestade (1882)
Deu-se, então, uma ocorrência: a avó dele morreu antes de tempo. As ocorrências não são outra coisa senão tempos e lugares impróprios: é-se colocado no lugar errado, ou cai-se no esquecimento e a impotência é tão grande como a de uma coisa que ninguém vai buscar. (Robert Musil, "Tonka", in A portuguesa e outras novelas)
Esta ideia de ocorrência proposta pelo narrador da novela de Musil tem um efeito estranho e ambíguo, pois revela e ao mesmo tempo esconde algo que nos diz respeito enquanto seres humanos. Revela-nos que uma ocorrência só é tida como tal pela desadequação do acontecimento ao espaço e ao tempo. Alguém que faz alguma coisa antes ou depois da hora aprazada, como por exemplo aquela avó que morreu antes de tempo. Alguém que ri, outro exemplo, dentro de uma Igreja, num espaço que não está destinado ao rir. Só é registado como ocorrência aquilo que não está adequado à norma social espácio-temporal em vigor.
Esta revelação tem contudo o efeito de esconder o carácter mais geral das ocorrências. Explico-me: mesmo aquilo que acontece dentro da norma social espácio-temporal é uma ocorrência. O que nos conduz a uma outra coisa. Cada um de nós é uma ocorrência que se manifesta num contínuo de ocorrências. Isto permite suspeitar que, enquanto ocorrências, nós estamos constantemente num tempo e num lugar errados. A norma social espácio-temporal visa esconder, através de um conjunto de regras comportamentais, a nossa condição de contínua e inultrapassável desadequação aos lugares e aos tempos. No fundo, suspeitamos, não sem fundamento, que nunca estamos no lugar que é o nosso e que pertencemos a um outro tempo que não o que nos foi dado a viver. Não passamos de simples ocorrências, de acontecimentos deslocados, de estranhos fora do seu espaço e do seu tempo.
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