quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Thomas Mann, Sua Alteza Real


Publicado em 1909, sete anos após o primeiro romance, Os Buddenbrook, Sua Alteza Real é uma das obras romanescas menos conhecida de Thomas Mann. Terá, na época, divido o público e a crítica, tendo conquistado os favores do primeiro e deixado a segunda desapontada. Quando se pensa na obra do autor o que vem de imediato à mente são romances como Os Buddenbrook, Morte em Veneza, Montanha Mágica ou Doutor Fausto. O que terá desapontado a crítica de então e encantado o público foi a obra parecer um conto de fadas, com um casamento por amor e um final feliz, tudo passado num Grão-Ducado, o de Grimmburg, que, também ele, na viragem do século XIX para o XX, parece saído de um conto de fadas. Esta sensação de leveza que percorre toda a narrativa é tudo menos superficial, havendo nela um olhar crítico tanto das instituições sociais como das existências individuais.

O Grão-Ducado é, na verdade, uma visão simbólica de parte da Europa que continuava, por aqueles anos, em convulsão desde que a Revolução francesa, nos finais do século XVIII, pôs em causa o Antigo Regime e as próprias monarquias. Um século não bastou para definir os contornos de um mundo novo. Foi preciso esperar a grande guerra de 1914-1918. Aquilo que Thomas Mann manifesta é a clara disfunção da instituição real – no romance, grã-ducal – num mundo movido pelo desenvolvimento da revolução industrial e da economia capitalista, onde os empreendedores são os grandes heróis que rasgam os caminhos que o mundo vai trilhar. Quando o Grão-Duque João Alberto III morre, o filho Alberto sucede-lhe, mas é um homem doente, neurótico, incapaz de exercer as funções públicas que lhe dizem respeito, que as delegará sistematicamente no irmão Nicolau Henrique. Thomas Mann mostra a decadência da instituição política na doença daquele que lhe dá corpo. A estrutura política tradicional do Grão-Ducado está doente por desfasamento com a realidade do mundo. Essa doença mantém o país atrasado e contamina as próprias finanças do Estado e da coroa. Esta era já, por essa Europa fora, a situação de muitas monarquias.

As grandes decisões políticas já não passavam pela coroa. Esta aquiescia nelas e tinha uma função de representação da unidade do país. A recusa do Grão-Duque incumbente de cumprir as funções de representação abriu o caminho para que o irmão, Sua Alteza Real Nicolau Henrique, figura em torno da qual se desenrola o romance, as exercesse. Como segundo na linha de sucessão do pai e tendo em conta a debilidade do irmão, tinha sido preparado para essas altas funções de representação. Essas altas funções, porém, não desencadeavam absolutamente nada no país. Tudo teria acontecido sem que ele estivesse presente numa inauguração, numa festa, num jantar. A vida efectiva passava ao lado da vida representada. Apesar de aclamado e vitoriado em todos os lugares onde se encontrasse, apesar de amado pelo povo que nele se reconhecia, Nicolau Henrique começou a sentir um grande vazio dentro de si. Tudo era meramente protocolar, uma encenação que servia para dar um verniz à realidade, mas que nenhum poder tinha sobre ela. Não apenas os discursos, mas as meras conversas de circunstâncias eram movidas por hábitos de cortesia protocolares a que faltava o interesse vivo pelas pessoas e pela realidade. O vazio sentido por Nicolau Henrique não era mais do que o resultado da pressão da função sobre si-mesmo, sobre a sua identidade, sobre a pessoa e a sua subjectividade.

Para além de conto de fadas, Sua Alteza Real é também um romance de formação, na tradição do Bildungsroman iniciada com Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister, de Goethe. O romance começa com o nascimento de Nicolau Henrique, um rapaz perfeito, com a excepção do braço esquerdo encurtado e a respectiva mão atrofiada, devido a inibição amniótica, no dizer do médico pessoal do Grão-Duque. A aprendizagem da futura Alteza Real começa na prática com o saber lidar com a sua deficiência, o que o obrigava a um certo tipo de pose. O romance mostra-o, depois, nas diversas etapas de vida. Na escola, no serviço militar, na universidade. Em todo lado, porém, o seu estar ali é uma representação, marcada sempre por uma descoincidência entre a ipseidade, constitutiva da pessoa, e a função inerente ao estatuto. Na verdade, ele não foi um verdadeiro estudante, nem um autêntico militar. Toda a sua formação foi feita para que a realidade, incluindo a sua, lhe fosse invisível. O fundamental era a adequação à função social que o estatuto o obrigava. Mais, o fundamental é que a sua pessoa se reduzisse ao seu conteúdo funcional. A sua aprendizagem é uma aprendizagem do esvaziamento da vida interior e de tudo aquilo que poderia ser marca de uma subjectividade que estivesse para além da máscara social.

O conto de fadas é desencadeado pelo interesse de Nicolau Henrique por Imma, a filha de um alemão, Samuel Spoelmann, cujo pai emigrara para a América, e lá fizera uma fortuna colossal. Spoelmann decide deixar a América e instalar-se no Grão-Ducado, pois as águas termais ali existentes ajudam à sua saúde. Imma é uma rapariga moderna, impetuosa, frequenta a universidade e interessa-se por coisas extraordinárias como a álgebra e outros ramos da matemática. Um longo processo de aproximação vai conduzir ao casamento do príncipe defeituoso e da bela, mas estranha, Imma Spoelmann. Thomas Mann não pinta uma paixão entre ambos, mas um amor que se desenvolve de forma apolínea, digamos assim. Não é um desvario dionisíaco provocado por Eros que os une, mas uma aproximação de ideais, na qual Nicolau Henrique se vê confrontado, para conquistar Imma, em dar conteúdo à sua pessoa, tornar-se um sujeito de si mesmo e até da sua função, dando-lhe um conteúdo pessoal e não meramente protocolar. Isto é, transformando-se num burguês, preocupado com as finanças do Grão-Ducado.

O casamento é visto pelo povo, pela corte e pelos os homens que possuíam o leme político como essencial para a subsistência do Grão-Ducado, à beira da bancarrota, devido a uma enorme dívida externa e sem uma economia capaz de a suportar. A transformação de Imma em princesa é apenas um pró-forma que dá colorido à transformação de um regime aristocrático decadente num regime burguês, assente na gestão rigorosa dos bens e fundado no poder do capital. O que Thomas Mann mostra no romance é a derrota da aristocracia, não porque tenha sido varrida do poder e da coroa por uma revolução violenta como a francesa, mas porque os próprios aristocratas se transformam em burgueses disciplinados. O vazio de uma função que se tornara meramente protocolar e que constituía a pessoa de Nicolau Henrique é, agora, preenchida pela descoberta da subjectividade, pelo interesse pela realidade material do mundo e por um amor apolíneo, onde as aventuras de Eros, movidas por Diónisos, estarão, por certo, rigorosamente vigiadas pelo duro e penetrante olhar de Apolo, com os seus imperativos de submissão à racionalidade.

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