domingo, 15 de maio de 2022

Sandel e a roda da Fortuna

Edward Burne Jones, A Roda da Fortuna, 1883

Na entrevista concedida ao jornal Público de hoje, o filósofo norte-americano Michael Sandel salienta a importância da sorte na vida dos indivíduos. Faz parte de uma argumentação contra a ideia de mérito, a qual, segundo ele, está a corroer as sociedades democráticas. As pessoas que alcançam sucesso na vida estão convencidas de que ele resulta apenas do seu mérito. Isso é falso. Apesar do talento e do trabalho, no sucesso de cada um há a contribuição dos outros, a qual é muitas vezes apagada, e também a sorte. Um dos exemplos dados é o de Cristiano Ronaldo. Não se nega que, no jogador português, exista muito talento e muito trabalho, mas o seu sucesso não depende apenas do seu mérito. Depende de muitos factores, onde existe a contribuição de outros (por exemplo, treinadores) e também da sorte. A sorte, por exemplo, de ter nascido num tempo em que se valoriza o futebol. Esse talento seria imprestável no Renascimento.

A estratégia de Sandel é sublinhar que o reconhecimento da sorte no destino dos indivíduos é um factor que pode tornar as pessoas de sucesso mais humildes e de prestarem atenção aos outros e, por certo, às próprias regras do jogo social em que uns são beneficiados e outros prejudicados. O filósofo americano visa, com esta argumentação, reforçar a ideia de bem comum e as próprias comunidades. Os antigos gregos e romanos tinham uma noção muito clara do papel da sorte, da fortuna, no destino das pessoas. Esse papel foi sendo rasurado e a partir do Iluminismo foi visto como uma explicação irracional. Com a globalização e o triunfo do chamado neoliberalismo, os vencedores sociais eliminaram da explicação do seu sucesso a sorte, racionalizando-o como fruto único do seu mérito, esquecendo coisas básicas como o facto de ninguém ser responsável pela sua carga genética, pela sua inteligência ou até pela sua capacidade de trabalhar e de perseverar. Perante os muitos milhões de perdedores, muitos deles apenas vítimas das circunstâncias e de decisões políticas que não podiam controlar, a retórica do mérito tem sido um factor de destruição do consenso democrático e de polarização política entre as elites e as pessoas comuns. Daí o apelo à humildade como o outro lado da sorte. 

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