Depois da Sonata
de Outono (1902), o primeiro romance da
tetralogia conhecida como Sonatas, Valle-Inclán publica, em 1903, o
segundo volume das memórias amorosas do Marquês de Bradomín, com o título, em
castelhano, Sonata de Estío. A ordem de publicação dos romances não
obedece à ordem cronológica das aventuras galantes deste marquês, um dândi
galante, feio, católico e sentimental, tal como ele se define. A tetralogia inicia-se
com as aventuras da idade outonal, onde a maturidade se prepara para dar lugar
à velhice, seguem-se as aventuras estivais, as de uma primeira maturidade. O
terceiro volume, Sonata de Primavera, retrocede aos tempos de juventude do
inveterado conquistador e a série conclui-se com a Sonata de Invierno. O
Marquês de Bradomín é uma reinterpretação do mito, muito espanhol, de D. Juan.
No entanto, esta reinterpretação é profundamente irónica, como se torna patente
em Sonata de Estío.
O amável e amoroso marquês decide fazer uma viagem para o
México. Um triplo objectivo o guiava. Conhecer os bens de família que por lá
herdou, reviver a conquista espanhola daqueles territórios e esquecer uma certa
Lilí que o traíra. Estamos assim, ao entrar no romance, perante um D. Juan
seduzido e abandonado, que sente necessidade de mudar de lugar para se recompor
da falência amorosa. A ironia de Valle-Inclán acentua-se na tensão entre o D.
Juan conquistado e abandonado e a necessidade compensatória de reviver a
conquista espanhola de novos mundos. Uma das linhas de leitura do romance é
então o jogo de compensações que enquadravam a aventura galante deste dândi
quixotesco. Tudo isto não deixa de lançar uma sombra sobre a época áurea
castelhana. Todo aquele processo de submissão dos povos ameríndios teria sido,
também ele, a compensação de que frustração espanhola?
Esta linha de subtil reflexão histórica emerge também numa
cena rocambolesca em que o Marquês de Bradomín enfrenta corajosamente um grupo
de bandidos para defender a vida de Juan Guzman, um homem com aspecto corajoso
e nobre, mas na verdade um bandoleiro como aqueles que o atacavam. Ao tomar
conhecimento do tipo de homem que tinha salvo, lamentou-se da decadência dos
tempos. Na época da conquista colonial, homens como aquele teriam sido elevados
à condição de nobres pelos serviços prestados à coroa, mas hoje em dia, numa
antiga colónia agora independente, não passam de criminosos. Aquilo que nos
tempos gloriosos da conquista seria motivo de glória é, agora, motivo de
castigo. Não é a crítica histórica ou política que dá o conteúdo ao romance. Aparece
incidentalmente, sempre envolta na ironia, como acontece quando Bradomín se
depara com o mordomo do palácio que herdara no México, um velho soldado que conspira
para reconquistar o México e a partir daí colocar na coroa espanhola Carlos de
Bourbon, príncipe das Astúrias, naquilo que ficou conhecido como o movimento
carlista, de natureza tradicionalista, antiliberal e absolutista, que esteve na
origem de três guerras civis em Espanha, durante o século XIX.
A obra gira em torno da nova paixão do marquês, agora por
uma crioula, uma mulher de beleza espantosa, a Niña Chole e que, de alguma
maneira, lhe recordava a traidora Lilí, um novo jogo compensatório. Esta
mulher, porém, é filha e amante de um terrível militar mexicano, o general Bermúdez,
que, se descobre que ela se envolve com o marquês, não hesitará em matar ambos. Como
já acontecera, de certa forma, no primeiro romance da tetralogia, a Sonata
de Otoño, também aqui emergem motivos que se integram numa área que, na altura
da publicação dos romances, estava a consolidar-se, a psicanálise, podendo o
incesto entre o general e a filha ser lido como uma refiguração do complexo de
Electra, para usar uma designação de Carl-Gustav Jung. O conjunto de peripécias
amorosas entre Bradomín e Niña Chole é todo ele atravessado por situações
equívocas, nas quais a conduta do nobre galego parece desacordar-se com a
imagem que dá de si mesmo. Na verdade, não apenas o marquês não passa de um D.
Juan pífio, como a coragem e ousadia são dúbias. Valle-Inclán é notável no uso
de processos que, numa primeira leitura, parecem dizer uma coisa, mas que, na
verdade, não deixam de sugerir o contrário do que afirmam.
Notável é a capacidade do escritor galego em recriar
ambientes. As suas descrições do Novo Mundo são extraordinárias, dando-lhes uma
vida exuberante, salientando o que naquelas paragens é excessivo e perigoso,
mas ao mesmo tempo extremamente atractivo para quem nasceu na Europa, num mundo
muito mais contido e cinzento. A descrição da exuberância da paisagem mexicana
e dos ambientes sociais é ainda perpassada por uma grande sensualidade, a qual,
claro, não emana do marquês, mas da bela crioula. Se se meditar no título da
novela, o Estio encontra-se mais na própria paisagem e ambiências do que na
idade do marquês. Tudo isto torna um pequeno romance de aparência simples –
estruturado em torno dos delíquios de Eros – numa obra complexa, que permite
diversas e contraditórias linhas de leitura, tal como sucede com a primeira Sonata.
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