sábado, 22 de agosto de 2020

Ramón del Valle-Inclán, Sonata de Estío


Depois da Sonata de Outono (1902), o primeiro romance da tetralogia conhecida como Sonatas, Valle-Inclán publica, em 1903, o segundo volume das memórias amorosas do Marquês de Bradomín, com o título, em castelhano, Sonata de Estío. A ordem de publicação dos romances não obedece à ordem cronológica das aventuras galantes deste marquês, um dândi galante, feio, católico e sentimental, tal como ele se define. A tetralogia inicia-se com as aventuras da idade outonal, onde a maturidade se prepara para dar lugar à velhice, seguem-se as aventuras estivais, as de uma primeira maturidade. O terceiro volume, Sonata de Primavera, retrocede aos tempos de juventude do inveterado conquistador e a série conclui-se com a Sonata de Invierno. O Marquês de Bradomín é uma reinterpretação do mito, muito espanhol, de D. Juan. No entanto, esta reinterpretação é profundamente irónica, como se torna patente em Sonata de Estío.

O amável e amoroso marquês decide fazer uma viagem para o México. Um triplo objectivo o guiava. Conhecer os bens de família que por lá herdou, reviver a conquista espanhola daqueles territórios e esquecer uma certa Lilí que o traíra. Estamos assim, ao entrar no romance, perante um D. Juan seduzido e abandonado, que sente necessidade de mudar de lugar para se recompor da falência amorosa. A ironia de Valle-Inclán acentua-se na tensão entre o D. Juan conquistado e abandonado e a necessidade compensatória de reviver a conquista espanhola de novos mundos. Uma das linhas de leitura do romance é então o jogo de compensações que enquadravam a aventura galante deste dândi quixotesco. Tudo isto não deixa de lançar uma sombra sobre a época áurea castelhana. Todo aquele processo de submissão dos povos ameríndios teria sido, também ele, a compensação de que frustração espanhola?

Esta linha de subtil reflexão histórica emerge também numa cena rocambolesca em que o Marquês de Bradomín enfrenta corajosamente um grupo de bandidos para defender a vida de Juan Guzman, um homem com aspecto corajoso e nobre, mas na verdade um bandoleiro como aqueles que o atacavam. Ao tomar conhecimento do tipo de homem que tinha salvo, lamentou-se da decadência dos tempos. Na época da conquista colonial, homens como aquele teriam sido elevados à condição de nobres pelos serviços prestados à coroa, mas hoje em dia, numa antiga colónia agora independente, não passam de criminosos. Aquilo que nos tempos gloriosos da conquista seria motivo de glória é, agora, motivo de castigo. Não é a crítica histórica ou política que dá o conteúdo ao romance. Aparece incidentalmente, sempre envolta na ironia, como acontece quando Bradomín se depara com o mordomo do palácio que herdara no México, um velho soldado que conspira para reconquistar o México e a partir daí colocar na coroa espanhola Carlos de Bourbon, príncipe das Astúrias, naquilo que ficou conhecido como o movimento carlista, de natureza tradicionalista, antiliberal e absolutista, que esteve na origem de três guerras civis em Espanha, durante o século XIX.

A obra gira em torno da nova paixão do marquês, agora por uma crioula, uma mulher de beleza espantosa, a Niña Chole e que, de alguma maneira, lhe recordava a traidora Lilí, um novo jogo compensatório. Esta mulher, porém, é filha e amante de um terrível militar mexicano, o general Bermúdez, que, se descobre que ela se envolve com o marquês, não hesitará em matar ambos. Como já acontecera, de certa forma, no primeiro romance da tetralogia, a Sonata de Otoño, também aqui emergem motivos que se integram numa área que, na altura da publicação dos romances, estava a consolidar-se, a psicanálise, podendo o incesto entre o general e a filha ser lido como uma refiguração do complexo de Electra, para usar uma designação de Carl-Gustav Jung. O conjunto de peripécias amorosas entre Bradomín e Niña Chole é todo ele atravessado por situações equívocas, nas quais a conduta do nobre galego parece desacordar-se com a imagem que dá de si mesmo. Na verdade, não apenas o marquês não passa de um D. Juan pífio, como a coragem e ousadia são dúbias. Valle-Inclán é notável no uso de processos que, numa primeira leitura, parecem dizer uma coisa, mas que, na verdade, não deixam de sugerir o contrário do que afirmam.

Notável é a capacidade do escritor galego em recriar ambientes. As suas descrições do Novo Mundo são extraordinárias, dando-lhes uma vida exuberante, salientando o que naquelas paragens é excessivo e perigoso, mas ao mesmo tempo extremamente atractivo para quem nasceu na Europa, num mundo muito mais contido e cinzento. A descrição da exuberância da paisagem mexicana e dos ambientes sociais é ainda perpassada por uma grande sensualidade, a qual, claro, não emana do marquês, mas da bela crioula. Se se meditar no título da novela, o Estio encontra-se mais na própria paisagem e ambiências do que na idade do marquês. Tudo isto torna um pequeno romance de aparência simples – estruturado em torno dos delíquios de Eros – numa obra complexa, que permite diversas e contraditórias linhas de leitura, tal como sucede com a primeira Sonata.

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