Em 1902, Ramón del Valle-Inclán começa a publicação da sua
tetralogia conhecida como Sonatas. Cada um dos romances – pequenos
romances – é dedicado a uma das estações do ano. As obras têm por objecto as
memórias amáveis – de amorosas – do fictício Marquês de Bradomín, um velho
conservador no exílio devido à sua fidelidade a Carlos de Bourbon e às políticas
antiliberais, legitimistas e de defesa do regresso ao Antigo Regime. As Sonatas,
do ponto de vista estético, representam uma reacção ao movimento artístico
conhecido como realismo e são um dos momentos mais altos do chamado modernismo
espanhol. São uma afirmação da arte pela arte, de uma preocupação com a
linguagem, procurando a raridade e a elevação aristocrática, e deixando-se
contaminar, no ritmo e na metafórica, pela música e pelas artes plásticas. Sonata
de Outono é o primeiro romance, e é claro nele a preocupação de captar,
através da linguagem, tanto o ritmo como a paisagem outonal da Galiza, sítio
onde se desenrola a trama romanesca. O Outono é a metáfora que sublinha a
maturidade consumada de Xavier, o Marquês de Bradomín.
O Marquês é uma variação do tema de D. Juan, apesar de feio,
sentimental e católico. Como estamos perante memórias, sabemos de imediato que
é um D. Juan retirado e que se entrega à rememoração da sua vida galante. Sonata
de Outono é a recordação de um amor trágico. O leitor é informado logo no
início do desfecho do romance. Concha, sentindo-se mortalmente doente, manda
chamar Xavier, em nome de um antigo amor, para que a acompanhe nos últimos
dias. Ela é casada, tem duas filhas, mas o marido está longe e o Marquês é a
sua grande paixão. As relações que entretecem à beira da morte são marcadas
pela tensão entre a consumação do desejo e a rejeição dessa consumação, devido
ao estado mórbido em que ela se encontra. Toda a obra é percorrida pela
aproximação entre Eros e Tânatos, pela insinuação da relação entre sexo e
morte, temática que terá uma enorme fortuna com a psicanálise. O jogo entre
Eros e Tânatos, porém, tem como finalidade ilustrar a ideia de amor fatal, não
porque seja a causa da morte, mas de uma eventual perdição da alma.
Concha vive os últimos dias dividida entre sentimentos contraditórios.
O amor que arde dentro dela implica a infidelidade matrimonial. No entanto, a
questão da infidelidade, tal como Valle-Inclán retrata o ambiente aristocrático
onde se desenrola a narrativa, não é por si mesmo importante. A sua importância
advém-lhe da proximidade da morte, de representar um pecado capital e dar à
protagonista a perspectiva de uma condenação eterna da alma. Consumar o amor ou
salvar a alma? Ceder à tentação e ao tentador – em Xavier há algo de satânico,
apesar de católico – ou resistir e reconciliar-se com Deus, agora que a morte
se aproxima. A temática religiosa na novela não é sem significado. A presença
do Nazareno em certo lugar do palácio não deixa de ter efeitos mesmo sobre a
consciência do Marquês, um homem na plena maturidade. Por outro lado, é em nome
da salvação que Concha resiste.
Valle-Inclán dá uma visão de uma aristocracia de província,
já anacrónica do ponto de vista da História, mas ainda fortemente arreigada aos
seus tiques de casta, ao modo de vida de séculos, à genealogia que lhe deu
olhar e porte altivos. Uma das características dessa aristocracia era a
combinação entre a piedade e a crueldade. Os homens eram cruéis e as mulheres
piedosas. Eles desafiavam Deus e elas ajoelhavam perante a cruz no altar.
Concha e Xavier são figurações enfraquecidas desses arquétipos de uma
aristocracia bárbara. Ela não deixa de ser piedosa e beata, mas é fraca com os
devaneios do coração. Ele é um aristocrata sedutor e não um violento e
impiedoso senhor de terras e homens. No entanto, a relação dele com Concha não
deixa de conter um outro tipo de violência, que nasce dos diferentes graus com
que o amor entre ambos é vivido. O dela é extremado e absoluto, o dele é,
fundamentalmente, erótico e efémero, demasiado efémero. O amor dela nasce do sentimento,
o dele do desejo. Não deixa de ser significativa esta transição no tipo de
crueldade do homem aristocrático. Do império físico ao império sentimental. As
memórias do Marquês são também a memórias do declínio de uma casta, cujo papel
no mundo se aproximava, a passos largos, do fim. A Grande Guerra de 1914-1918,
ainda não sonhada em 1902, pôs-lhe fim. Os cultores do Antigo Regime não
passavam já de fidalgos perdidos em justas eróticas, que, afundados na velhice
e no exílio, não têm outra ocupação senão a rememoração.
Muito interessante.
ResponderEliminarAbraço
Muito obrigado.
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