O romance da escritora polaca, Olga Tokarczuck, prémio Nobel
da literatura em 2018, foi publicado em 2009 na Polónia. Permaneceu
desconhecido no Ocidente até à sua tradução em inglês em 2018. A edição portuguesa,
da Cavalo de Ferro, é de 2019. A natureza da obra é daquelas que permite
discutir a pertinência dos géneros literários. Um romance policial? Um romance
de intervenção? Um drama psicológico? De certa maneira, é tudo isso sem, no
entanto, ser um tipo de romance específico. Existem assassinatos em série e uma
preocupação policial em solucioná-los. Há uma militância em defesa dos animais
e contra as prorrogativas que os caçadores reivindicam para si, bem como um
questionamento da diferença ontológica, e também teológica, entre animais
humanos e não humanos. Por fim, ou talvez no início, exista o drama que
representa a velhice e a necessidade de encontrar um sentido para a existência,
nesses dias em que o préstimo para a sociedade findou e a morte ainda não fez o
seu trabalho.
A narradora e protagonista principal da obra é Janina Duszejko.
Antiga engenheira de pontes e calçadas vê-se compelida a uma nova forma de vida
por motivos de saúde. Passa pelo ensino e acaba por ir viver para um lugarejo
sem nome, com apenas sete casas, numa zona de floresta, com seis meses de neve
por ano, perto da fronteira da Polónia com a República Checa. Ocupa o tempo com
algumas lições de inglês na escola primária perto de onde vive, traduz o poeta
inglês William Blake (o título do romance é a transcrição de um verso de Blake,
do livro The Marriage of Heaven and Hell), pratica a astrologia e toma
conta das casas vizinhas que, com a exclusão da dela e de mais duas, servem
apenas para férias dos proprietários. Aliás, ela não é a única solitária.
Também os seus dois vizinhos são solitários, estão de alguma forma cortados do
mundo. A trama narrativa é desencadeada pela morte de um deles, Pé Grande,
engasgado com um osso de veado. Todas estas ocupações de Janina são exercícios
de ocupação do tempo, onde a conjugação das traduções de Blake com a prática da
astrologia são formas de dar um sentido à existência, agora que o exercício de
uma profissão técnica se tornou impossível. Esta transição da tecnologia, com
os seus estritos limites racionais, para o convívio com um poeta inspirado
pelas musas e com os desígnios dos astros não é um aspecto insignificante no
desenvolvimento da personagem/narradora. Há um alargamento dos limites da acção
permissível e isso tem impacto na economia da intriga.
Janina desenvolveu também uma clara consciência crítica das
concepções antropocêntricas. Para ela, o homem não tem direitos especiais sobre
as outras espécies e por isso ela é uma vigorosa activista contra a caça e os
caçadores. Vê na morte de Pé Grande, um caçador, uma vingança dos próprios
animais. Advoga uma teoria da rebelião animal contra os homens, por certo inspirada pelo espírito de rebelião de Blake. Eles teriam uma consciência clara
dos seus inimigos e estariam predispostos a vingar-se. E é aqui que entra o
romance policial. Depois da morte acidental de Pé Grande, surgem outras mortes,
todas elas de membros do clube de caça existente nas redondezas. Ela tenta contribuir
para a solução do enigma, escrevendo para a polícia e explicando-lhe a sua
teoria da vingança animal. Mais do que assassínios, aquelas mortes seriam o
exercício de uma retribuição por parte dos animais, os quais nunca evitam
deixar vestígios no local dos assassinatos. Estaríamos assim perante uma
arcaica forma de justiça retributiva, a qual existe entre os homens desde
tempos imemoriais e, possivelmente, antes da sua chegada ao planeta. A polícia
e os cidadãos proeminentes, todavia, não a levam a sério. Julgam-na um pouco
louca e vítima de uma inimizade irracional com a nobre prática da caça e com
aqueles que a praticam.
Mais importante do que descobrir quem matou os diversos
membros do clube de caça, a parte policial da obra, é dar atenção ao questionamento
filosófico e político que ela representa. Diversas tensões percorrem a obra. A
mais imediata é a tensão entre animais humanos e não humanos. A fronteira que
os separa talvez seja tão débil quanto é a fronteira que naqueles lugares
separa a Polónia da República Checa. Uma outra é aquela que atravessa o saber e
o divide em saberes técnicos e saberes inspirados, cada qual com a sua forma de
compreender o mundo, o ordenar e de lhe dar sentido. Por fim, e a não menos
importante, a tensão entre a justiça civil, a qual nasce de um contrato entre
os homens para sua protecção e gestão dos seus interesses, e uma outra justiça de
natureza arcaica, que nasce no interior da própria natureza e cujos decretos, fundados
nas suas tábuas de direitos e deveres, estão aquém da linha que pretende
separar animais humanos e animais não humanos, para usar uma distinção agora em
voga.
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