sexta-feira, 3 de julho de 2020

Lições do desconfinamento


Com o desconfinamento e a aproximação a uma vida normal, aquilo que fora um êxito em Portugal no combate à pandemia parece estar a dissolver-se com a multiplicação das cadeias de transmissão e a situação particularmente difícil de algumas zonas de Lisboa. Em tudo isto se cruzam razões diversas que tornam o fenómeno complexo. Vejamos algumas, apenas algumas, dessas razões.

As zonas agora atingidas são aquelas em que as condições de vida das pessoas não lhes permitem ficar em casa ou evitar meios de transporte sobrelotados e perigosos. O que a pandemia está a destapar é aquilo que não se tem querido ver. Parte significativa das pessoas que fazem os trabalhos menos diferenciados vivem em condições deploráveis. Os salários praticados são baixos e a vida nas grandes áreas urbanas é muito cara. Por outro lado, faz parte da cultura nacional a inexistência de uma rede de transportes rápida e cómoda. Os transportes públicos, em horas de ponta, implicam a submissão das pessoas à sobrelotação. Nem sequer lhes ocorre que isso não deve ser assim nem tem de ser assim. Estas zonas são um barril de pólvora, agora, do ponto de vista sanitário. Mais tarde, do ponto de vista social.

Uma outra dimensão da realidade é aquela que se relaciona com os comportamentos das pessoas. O governo agiu como se estas – principalmente, os mais novos – se comportassem, por iniciativa própria, de forma razoável e responsável. Não teve em atenção a cultura que está instalada nas sociedade contemporâneas. A rápida gratificação dos desejos e dos apetites, aliada a uma crença disseminada de que o vírus é inócuo para os mais jovens, não se coaduna com os comportamentos necessários à situação em que vivemos. Não parecem descabidas as críticas que se têm ouvido pela forma como se está a fazer o processo de aproximação à vida normal. Rápido demais e sem a preparação devida.

É em situações destas que se percebe a pertinência do pensamento de Thomas Hobbes sobre o papel da segurança na instituição do vínculo político. A segurança não se relaciona apenas com a necessidade de evitar a guerra de todos contra todos. Ela também se liga à resolução de ameaças como a que vivemos, na qual a acção do soberano é central para conter o perigo. Em casos como estes, aos detentores do poder político não lhes cabe o papel de confiarem na responsabilidade das pessoas. Cabe-lhes, antes, o de prever o pior e de agir com determinação para o evitar. E parece ter sido isto que, depois do sucesso inicial, começou a ser esquecido. Possivelmente, não apenas em Portugal.

[A minha crónica no jornal A Barca]

2 comentários:

  1. Excelente análise. Não me parece que tenha havido sucesso inicial mas sim uma história mal contada.

    Abraço

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    1. Algum sucesso houve, pois evitou-se o descalabro que aconteceu em Itália, Espanha, França ou Inglaterra, mas agora as coisas parecem estar a ser reguladas com a nossa proverbial bonomia, isto é, facilidade.

      Abraço

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