sábado, 11 de julho de 2020

Anthony Doerr, Toda a luz que não podemos ver


O romance de Anthony Doerr, Toda a luz que não podemos ver, foi publicado em Maio de 2014 e ganhou o Prémio Pulitzer para ficção, no ano de 2015, bem como a Andrew Carnegie Medal for Excellence in Fiction. A edição portuguesa é também de 2015. O cenário temporal onde se desenvolve a acção romanesca é o da segunda guerra mundial e as duas personagens centrais, Marie-Laure LeBlanc, uma rapariga francesa, e Werner Pfennig, um rapaz alemão, são marcados, cada um deles, por uma perda fundamental. Devido a um problema de cataratas, ela cegou aos seis anos. Ele, por seu turno, é órfão e vive num orfanato. A obra combina as características de diversos géneros literários. É ao mesmo tempo um Bildungsroman (um romance de formação), um romance sobre a segunda guerra mundial, um romance de aventuras e ainda uma meditação sobre o destino, a liberdade e o condicionamento que a realidade envolvente coloca aos seres humanos.

De todas estes aspectos, o mais dispensável, na trama romanesca, é o de romance de aventuras. Essa faceta decorre à volta de um diamante que possui uma maldição. O importante é a escolha de uma cega e de um órfão, jovens durante o tempo dos acontecimentos, para protagonistas. A sua condição é a de estarem afectados por uma perda que condiciona a sua existência e lhes diminui a liberdade, ao ponto de terem a sensação de não a possuírem. Esta condição de perda presente nos protagonistas é o contraponto de um mundo também em perda devido à segunda guerra mundial e à erosão de valores gerada tanto pelo regime totalitário nazi como pelas próprias circunstâncias do conflito, no qual os limites da decência humana são ultrapassados com excessiva facilidade.

Marie-Laure LeBlanc e Werner Pfennig têm de enfrentar, no processo de formação, os seus condicionamentos. Como poderá ela orientar-se num mundo construído sob o efeito da luz, um mundo visual? Como poderá ele, sem família, recolhido num orfanato, condenado a ter ir trabalhar para mina de carvão aos 15 anos, realizar o seu sonho de ser cientista, fugir à escuridão da mina e deixar-se guiar pela luz da ciência? A questão central é se esses condicionamentos possuem uma natureza rigidamente determinada, se são uma consequência inexorável vinda do passado, ou se há a possibilidade de lhes fugir por actos de liberdade. O que se coloca a ambos os jovens não é o mero problema teórico de possuírem livre-arbítrio, mas o que fazer com ele, caso admitam que o possuem. O que fazer nos momentos mais difíceis, como aqueles que se passam Saint-Malo, cidade à qual a guerra os conduz? Ela chegou ali vinda de Paris para fugir com o pai da ocupação alemã, ele integrado no exército invasor com a missão de detectar um posto clandestino de rádio que dava informações cifradas aos aliados, e que funcionava, precisamente, na casa do tio-avô de Marie-Laure e aonde ela vivia.

O romance, ao desenvolver este questionamento sobre a liberdade no processo de formação de ambos, deixa compreender, ao mesmo tempo, algumas facetas da segunda guerra mundial. A obra de Doerr torna manifesto o grau de adesão mística dos jovens ao nazismo, a suspensão por eles da racionalidade, do bom senso e da empatia com os seres humanos, tudo isso substituído por um culto feroz da violência, pela glorificação do mais forte e pela ausência de piedade que se deve ostentar como programa de vida ao serviço Füher e forma de se dissolver no fundo atávico da comunidade. Observa-se também a resistência francesa, a forma como os cidadãos franceses se opuseram à invasão nazi, como se organizaram para enfrentar o inimigo que os humilhara. A obra deixa perceber, todavia, uma realidade matizada e não é um exercício maniqueísta, no qual os bons estão todos de um lado e os maus no outro. Jutta, a irmã de Werner, opõe-se, anda que no âmbito restrito da relação familiar, ao delírio criminoso alemão, enquanto o pai de Marie-Claude é preso pelos alemães após denúncia de um colaboracionista francês.

O processo de formação conduzirá os dois jovens a destinos diferentes. A liberdade – e é possível detectar no romance o eco da ideia sartriana de que estamos condenados à liberdade – é um exercício que, por si mesmo, não nos assegura outra coisa senão sermos livres. Entregues a essa liberdade, as pessoas seguem caminhos diferenciados e chegam a portos também eles diferenciados. Será ela, a liberdade de assumirmos um destino, de fazermos uma escolha, toda essa luz que não podemos ver. A liberdade não é do domínio da experiência empírica, mas a luz invisível que na nossa razão nos guia e torna humanos, que faz de nós mais que meros artefactos manipulados pela espírito da massa.

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