quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Direitos humanos, é melhor esquecer


A necessidade de comentar qualquer evento coloca, muitas vezes, Marcelo Rebelo de Sousa em terreno escorregadio, onde tenta equilibrar-se não sem dificuldade. Esta poderia ser uma explicação para a extraordinária afirmação: “O Qatar não respeita os direitos humanos. Toda a construção dos estádios e tal, mas, enfim esqueçamos isto. É criticável, mas concentremo-nos na equipa.” Uma outra explicação poderia ser que a paixão futebolística é de tal modo avassaladora que cega a própria razão. Parece que os altos dignitários nacionais sofrem todos dessa cegueira, são todos apaixonados pelo futebol. Deverá, porém, a paixão sobrepor-se à razão? Ou haverá uma razão política que se oculta na paixão futebolística?

O futebol é um desporto que exerce enorme fascínio sobre os cidadãos. Nele existem duas características que marcam as sociedades actuais. Por um lado, representa, ao seu mais alto nível, uma exemplificação das sociedades de mercado alicerçadas no mérito dos concorrentes. O futebol é um exemplo da meritocracia que o pensamento liberal julga dever ser uma característica central das relações humanas. Tudo no futebol é concorrência e ganham os que tiverem mais mérito. Esta faceta liberal do futebol, todavia, combina-se com uma outra muito pouco liberal, o tribalismo. Este tribalismo tem duas facetas. O tribalismo clubista, onde as tribos de diversas cores se defrontam, e tribalismo nacionalista. Em alguns países este tribalismo é o único lugar onde o nacionalismo se manifesta. Noutros, será uma ostentação da patologia nacionalista reinante.

Esta combinação de meritocracia liberal e de tribalismo nacional não é apolítica. Pelo contrário. Marcelo Rebelo de Sousa – assim como Augusto Santos Silva e António Costa – agem por interesse político. O futebol mobiliza demasiadas paixões, para que os políticos tenham coragem de afirmar aquilo que deveriam afirmar: que o futebol, na sua organização internacional, deve ser penalizado pela escolha feita. Os agentes políticos democráticos deveriam não só excluir a sua presença nos jogos, como terem uma atitude crítica sobre a realização do Mundial nas circunstâncias que se conhecem. Contudo, o interesse político local, a necessidade de não perturbar os eleitores com coisas desagradáveis e de confrontá-los com o irracional da sua paixão, leva a que um Presidente de um país democrático diga, sem pudor, “enfim esqueçamos isto”. Para que a bola role sem perturbação, há que limpar a memória. Talvez mesmo formatar o disco onde estão guardados os direitos humanos.

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