O cristianismo talvez seja a mais estranha de todas as religiões. É marcada por um exercício de humilhação, como se esta fosse a condição de possibilidade de uma exaltação numa outra vida. Estamos perante uma religião que nasce da ideia de que Deus encarnou, viveu uma vida humilde e morreu na cruz, a mais humilhante das formas de morte daqueles tempos. A questão começa de imediato no nascimento do Messias. Não nasce num palácio, nem nos círculos do poder religioso judaico. Nasce num estábulo, como se quisesse identificar, na Terra, a humildade como a marca daquilo que é divino.
Se há virtude que, nos dias de hoje, tem má fama, essa é a da humildade. Não há quem não queira afirmar-se, mostrar-se como o melhor, o mais forte, o mais sedutor, o mais poderoso. A vida social e a educação dos neonatos convergem para a afirmação da subjectividade, como se cada uma fosse o centro do universo, o ponto em torno do qual tudo deve girar. O Natal simboliza o contrário. O mais poderoso é o mais frágil e humilde. A encarnação da divindade não vem para mostrar um poder, mas para servir até à ignomínia da cruz. A descristianização da sociedade significa que o modelo crístico deixou de ser há muito o ideal regulador do homem. O Natal, para a nossa cultura, é um anacronismo e, ao mesmo tempo, uma provocação.
Essa provocação
cresce quando se contrapõe a pobreza do presépio de Belém e o ideal social que
nos rege. Ter mais, consumir mais, aceder ao maior número de experiências
possíveis. O próprio festejo natalício já não é o da pobreza do Menino Jesus,
mas da capacidade que se tem de distribuir presentes, uma afirmação de que não
se é pobre. O cristianismo, com o nascimento e morte do Cristo, é um exercício de
desapossamento de si e dos bens materiais. Ora, isso é totalmente estranho aos
valores pelos quais nos regemos. Nada há de mais incompatível com o actual
espírito natalício, como o encaramos, do que a terrível frugalidade do presépio
de Belém.
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