segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Perfis 1. O pianista

Ellsworth Kelly, Awnings, Avenue Matignon, 1950
A mão pega uma folha da partitura, como se houvesse uma longa hesitação na interpretação daquela passagem da obra. Sentado, o pianista olha-a com o zelo da atenção prestada a um objecto amado. Depois, parece que vai voltar a página, mas alguma coisa o atormenta, e o gesto fica suspenso, a folha presa entre o polegar e o indicador, os olhos fixos no papel e uma concentração que traz à memória o rapto místico de algum santo. Mais do que tempo de ensaio, é hora de reflexão meditativa sobre as intenções do compositor. Da boca pende-lhe um cachimbo, de onde, por vezes, se soltam nuvens de um fumo espesso, subindo em espiral para desaparecerem tragadas pelo amarelado do tecto. O silêncio é interrompido, o artista executa uns acordes com a mão esquerda, mas logo pára e concentra os olhos na partitura. Lá fora o dia desliza cinzento, há muito que um céu de chumbo cobre a luz do sol. De perfil, o pianista parece uma ave pré-histórica, os cabelos sobre o pescoço lembram penas levemente desarranjadas por algum movimento repentino, e o nariz, ao desenhar uma curva da base onde nasce até à ponta, deixa no observador a sensação de um bico de pássaro. Há uma tensa energia naquele homem que suspendeu os movimentos. A reflexão não é nele uma via para o cepticismo e para indiferença, perante a impossibilidade de escolher um caminho. Quem o vê percebe de imediato, pela inclinação do corpo, pela forma como a cabeça enfrenta a partitura, que encontrará uma solução que o satisfaça. Uma baforada sai-lhe de entre os lábios, a mão direita vira a página, a esquerda retira o cachimbo da boca e pousa-o num pequeno dispositivo para o acolher. Cerra os olhos, e uma música vigorosa responde ao dedilhar subtil das teclas do piano. 

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