Ellsworth Kelly, Awnings, Avenue Matignon, 1950 |
A mão
pega uma folha da partitura, como se houvesse uma longa hesitação na interpretação
daquela passagem da obra. Sentado, o pianista olha-a com o zelo da atenção
prestada a um objecto amado. Depois, parece que vai voltar a página, mas alguma
coisa o atormenta, e o gesto fica suspenso, a folha presa entre o polegar e o indicador,
os olhos fixos no papel e uma concentração que traz à memória o rapto místico
de algum santo. Mais do que tempo de ensaio, é hora de reflexão meditativa
sobre as intenções do compositor. Da boca pende-lhe um cachimbo, de onde, por
vezes, se soltam nuvens de um fumo espesso, subindo em espiral para desaparecerem
tragadas pelo amarelado do tecto. O silêncio é interrompido, o artista executa
uns acordes com a mão esquerda, mas logo pára e concentra os olhos na
partitura. Lá fora o dia desliza cinzento, há muito que um céu de chumbo cobre
a luz do sol. De perfil, o pianista parece uma ave pré-histórica, os cabelos
sobre o pescoço lembram penas levemente desarranjadas por algum movimento
repentino, e o nariz, ao desenhar uma curva da base onde nasce até à ponta,
deixa no observador a sensação de um bico de pássaro. Há uma tensa energia
naquele homem que suspendeu os movimentos. A reflexão não é nele uma via para o
cepticismo e para indiferença, perante a impossibilidade de escolher um
caminho. Quem o vê percebe de imediato, pela inclinação do corpo, pela forma
como a cabeça enfrenta a partitura, que encontrará uma solução que o satisfaça.
Uma baforada sai-lhe de entre os lábios, a mão direita vira a página, a
esquerda retira o cachimbo da boca e pousa-o num pequeno dispositivo para o
acolher. Cerra os olhos, e uma música vigorosa responde ao dedilhar subtil das
teclas do piano.
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