quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Thomas Bernhard, Perturbação


Publicado em 1967, Perturbação (Verstörung) é o segundo romance do escritor austríaco Thomas Bernhard. O autor faz parte de uma linhagem notável de escritores austríacos, onde se inscrevem Robert Musil e Hermann Broch. Como nestes autores, também em Bernhard encontramos uma literatura que mais do que contar histórias pretende desvelar a realidade não apenas do mundo humano, mas do próprio mundo que se manifesta através da humanidade. Se o leitor pretender uma boa história, com uma intriga bem urdida e um desenlace de cortar a respiração, então não vale a pena abrir o romance. Se, todavia, achar que a arte, no caso a literatura, é um lugar de aprendizagem e de reflexão sobre aquilo que é essencial e um questionamento sobre o sentido da existência, então terá no escritor austríaco uma proverbial companhia.

O livro parte de uma ideia simples. Um médico da zona dos Alpes austríacos perante a incomunicabilidade crescente entre ele os dois filhos, agravada com a morte da mulher, decide convidar o mais velho, estudante de engenharia de minas e com a pretensão de se tornar cientista, a acompanhá-lo num dia de visitas aos pacientes que tem nas diversas aldeias. A ideia seria lançar uma ponte para estabelecimento de comunicação. O tempo romanesco corresponde assim apenas a um dia, a uma viagem de um dia pelo mundo dos enfermos tratados pelo pai. Se olharmos para a ordem do mundo, faz parte dela a doença. Esta, na verdade, não representa uma perturbação, mas apenas um elemento negativo em tensão com a saúde, tal como a morte se encontra em tensão com a vida, fazendo ambas parte de um mundo organizado e não caótico. O que o jovem candidato a cientista, um representante da racionalidade, e narrador, vai descobrir é uma realidade profundamente perturbada, muito além – ou aquém – da doença. O mundo rural da montanha que descreve Bernhard está longe da imagem idealizada da ruralidade que ainda hoje transportamos. Pelo contrário, é um mundo brutal, violento e profundamente perverso, onde o assassinato, a violação de crianças e o suicídio parecem ser correntes. Se se pensar que o mundo rural é o lugar onde persistem as sagradas normas da moralidade, as descrições de Bernhard são um terrível soco no estômago. Todo aquele mundo sofre, para além da doença física, uma doença moral resultante de uma incomunicabilidade entre os seres humanos, reflexo de uma perturbação radical da ordem do mundo.

Este mundo é descrito na primeira parte do romance, através dos diversos pacientes do pai do narrador. Esta primeira parte da viagem do jovem é uma verdadeira peregrinatio ad loca infecta, uma iniciação à vida tal como ela é. A segunda e última parte, mais de metade do romance, narra a visita ao príncipe Saurau, um grande latifundiário, cuja sombra se estende por toda aquela zona montanhosa. Aquilo que o narrador descreve é o longuíssimo monólogo do príncipe que se estende por cerca de 140 páginas. Tudo aquilo que inquieta, desassossega e perturba o príncipe é objecto do seu monólogo. As relações familiares, as relações com o mundo envolvente, o futuro da sua propriedade. Tudo é passado em revista, tecendo o príncipe comentários contraditórios, produzindo afirmações que se anulam entre si, deduzindo conclusões sustentadas por premissas inverosímeis. A questão central, porém, é a relação com o filho, e herdeiro único, e por causa disso a profunda preocupação com o futuro de Hochgobernitz, a propriedade da família, com os seus interesses económicos diversificados e o grande número de pessoas dependentes dos Saurau.

Se a incomunicabilidade entre o médico e o filho/narrador é grande, este assiste à exposição de uma incomunicabilidade mais radical. Um dos momentos mais extraordinários do monólogo do príncipe é quando este, numa espécie de prolepse profética, descreve minuciosamente a destruição de Hochgobernitz pelo filho, após a sua morte. É uma destruição que é apresentada como se fosse uma luta de alguém que se afastou para Londres e se pretende defender de tudo o que há de perturbante naqueles lugares, na sua própria família, nas gentes que dependem ou vivem na área de influência dos Saurau. O facto de o filho do médico assistir ao discurso do príncipe é o ritual final da cerimónia iniciática ao mundo da vida como desrazão, iniciada na primeira parte, em que foi tomando conhecimento da perturbação do mundo rural. O jovem candidato a cientista toma conhecimento de uma outra realidade onde a razão com os seus imperativos técnicos e morais não funciona.

Existem algumas leituras do romance que defendem que a principal personagem é a morte. É verdade que em diversas passagens a morte se encontra presente, seja num homicídio, seja num cancro em estado avançado, seja no suicídio. Todavia, como se disse acima, a morte faz parte de uma ordem e de um cosmos, não representando aí qualquer perturbação. Não será perda de tempo dar atenção à epígrafe escolhida, por Bernhard, para abrir o romance. Trata-se do célebre fragmento 206 de Pascal: Le silence éternel de ces espaces infinis m'effraie (O silêncio eterno destes espaços infinitos assusta-me). Ora aquilo que, no início dos tempos modernos, descoberto a partir dos trabalhos de Galileu, se apresentou com algo assustador, não deixou de crescer com o passar dos séculos até se tornar uma grande perturbação, uma incapacidade de encontrar uma orientação existencial e, como descobre na sua delirante eloquência o príncipe, para estruturar um futuro. Esta perturbação nasceu no momento em que o homem olhou o céu e nele apenas viu um silêncio eterno de espaços vazios.

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