Publicado em 1967, Perturbação (Verstörung) é
o segundo romance do escritor austríaco Thomas Bernhard. O autor faz parte de
uma linhagem notável de escritores austríacos, onde se inscrevem Robert Musil e
Hermann Broch. Como nestes autores, também em Bernhard encontramos uma
literatura que mais do que contar histórias pretende desvelar a realidade não
apenas do mundo humano, mas do próprio mundo que se manifesta através da
humanidade. Se o leitor pretender uma boa história, com uma intriga bem urdida
e um desenlace de cortar a respiração, então não vale a pena abrir o romance.
Se, todavia, achar que a arte, no caso a literatura, é um lugar de aprendizagem
e de reflexão sobre aquilo que é essencial e um questionamento sobre o sentido
da existência, então terá no escritor austríaco uma proverbial companhia.
O livro parte de uma ideia simples. Um médico da zona dos
Alpes austríacos perante a incomunicabilidade crescente entre ele os dois
filhos, agravada com a morte da mulher, decide convidar o mais velho, estudante
de engenharia de minas e com a pretensão de se tornar cientista, a acompanhá-lo
num dia de visitas aos pacientes que tem nas diversas aldeias. A ideia seria
lançar uma ponte para estabelecimento de comunicação. O tempo romanesco
corresponde assim apenas a um dia, a uma viagem de um dia pelo mundo dos
enfermos tratados pelo pai. Se olharmos para a ordem do mundo, faz parte dela a
doença. Esta, na verdade, não representa uma perturbação, mas apenas um
elemento negativo em tensão com a saúde, tal como a morte se encontra em tensão
com a vida, fazendo ambas parte de um mundo organizado e não caótico. O que o
jovem candidato a cientista, um representante da racionalidade, e narrador, vai
descobrir é uma realidade profundamente perturbada, muito além – ou aquém – da
doença. O mundo rural da montanha que descreve Bernhard está longe da imagem
idealizada da ruralidade que ainda hoje transportamos. Pelo contrário, é um
mundo brutal, violento e profundamente perverso, onde o assassinato, a violação
de crianças e o suicídio parecem ser correntes. Se se pensar que o mundo rural
é o lugar onde persistem as sagradas normas da moralidade, as descrições de
Bernhard são um terrível soco no estômago. Todo aquele mundo sofre, para além
da doença física, uma doença moral resultante de uma incomunicabilidade entre
os seres humanos, reflexo de uma perturbação radical da ordem do mundo.
Este mundo é descrito na primeira parte do romance, através
dos diversos pacientes do pai do narrador. Esta primeira parte da viagem do
jovem é uma verdadeira peregrinatio ad loca infecta, uma iniciação à
vida tal como ela é. A segunda e última parte, mais de metade do romance, narra
a visita ao príncipe Saurau, um grande latifundiário, cuja sombra se estende
por toda aquela zona montanhosa. Aquilo que o narrador descreve é o longuíssimo
monólogo do príncipe que se estende por cerca de 140 páginas. Tudo aquilo que
inquieta, desassossega e perturba o príncipe é objecto do seu monólogo. As
relações familiares, as relações com o mundo envolvente, o futuro da sua
propriedade. Tudo é passado em revista, tecendo o príncipe comentários
contraditórios, produzindo afirmações que se anulam entre si, deduzindo
conclusões sustentadas por premissas inverosímeis. A questão central, porém, é
a relação com o filho, e herdeiro único, e por causa disso a profunda
preocupação com o futuro de Hochgobernitz, a propriedade da família, com os
seus interesses económicos diversificados e o grande número de pessoas
dependentes dos Saurau.
Se a incomunicabilidade entre o médico e o filho/narrador é
grande, este assiste à exposição de uma incomunicabilidade mais radical. Um dos
momentos mais extraordinários do monólogo do príncipe é quando este, numa
espécie de prolepse profética, descreve minuciosamente a destruição de
Hochgobernitz pelo filho, após a sua morte. É uma destruição que é apresentada
como se fosse uma luta de alguém que se afastou para Londres e se pretende
defender de tudo o que há de perturbante naqueles lugares, na sua própria
família, nas gentes que dependem ou vivem na área de influência dos Saurau. O
facto de o filho do médico assistir ao discurso do príncipe é o ritual final da
cerimónia iniciática ao mundo da vida como desrazão, iniciada na primeira
parte, em que foi tomando conhecimento da perturbação do mundo rural. O jovem
candidato a cientista toma conhecimento de uma outra realidade onde a razão com
os seus imperativos técnicos e morais não funciona.
Existem algumas leituras do romance que defendem que a
principal personagem é a morte. É verdade que em diversas passagens a morte se
encontra presente, seja num homicídio, seja num cancro em estado avançado, seja
no suicídio. Todavia, como se disse acima, a morte faz parte de uma ordem e de
um cosmos, não representando aí qualquer perturbação. Não será perda de tempo
dar atenção à epígrafe escolhida, por Bernhard, para abrir o romance. Trata-se
do célebre fragmento 206 de Pascal: Le silence éternel de ces espaces
infinis m'effraie (O silêncio eterno destes espaços infinitos assusta-me).
Ora aquilo que, no início dos tempos modernos, descoberto a partir dos
trabalhos de Galileu, se apresentou com algo assustador, não deixou de crescer
com o passar dos séculos até se tornar uma grande perturbação, uma incapacidade
de encontrar uma orientação existencial e, como descobre na sua delirante
eloquência o príncipe, para estruturar um futuro. Esta perturbação nasceu no
momento em que o homem olhou o céu e nele apenas viu um silêncio eterno de
espaços vazios.
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