sábado, 28 de setembro de 2019

O prazer de ir a lado nenhum


O maior prazer daqueles que frequentam a literatura será o da deambulação, visitar lugares desconhecidos e confrontar-se com mundos inesperados, andar por aí sem ir a lado nenhum. Se quisermos uma prova sobre a existência de uma pluralidade de mundos, basta uma palavra: literatura. Cada romance traz com ele um mundo, diríamos um mundo potencial onde seria plausível imaginar pessoas de carne e osso a viver, carregadas com as suas expectativas, vitórias e o drama das derrotas. A poesia é ainda mais radical, pois cada poema, pequeno que seja, traz em si um universo. O que esses mundos da literatura possuem de especial é que a sua criação é feita a duas mãos. O escritor e o leitor que conclui no seu espírito a obra produzida pelo autor. Não há apenas um romance Os Maias ou um A Montanha Mágica. Há tantos quantos os leitores que, ao interpretarem os textos, os fazem viver sempre de forma singular.

Há quem diga que apenas lê os clássicos. A justificação que apresenta é pertinente. Como aquilo que há para ler é tanto e a esperança de vida tão curta, o mais ajuizado é dar atenção apenas ao que a tradição canonizou. No entanto, esta perspectiva impede-nos o prazer da descoberta, evita a experiência do erro, põe de lado toda uma riqueza literária que o tempo apagou. Se seguisse esse sábio conselho nunca teria descoberto Joaquim Paço de Arcos, nem estaria a ler Carlos Malheiro Dias. Este era visto, após a morte de Eça de Queiroz como o grande romancista português. O tempo não esteve de acordo, mas é um escritor que vale a pena ler. Tem um poder descritivo de grande alcance e precisão e não deixa de ecoar nos universos literários que constrói um ethos que desconhecemos.

Como dizia a princípio, o grande prazer é o da deambulação. E é isso que faço neste momento, indo entre Malheiros Dias, Filho das Ervas, e Anatole France, A Revolta dos Anjos, atravessando pelo meio os poetas Daniel Jonas, Canícula, Amândio Reis, Spinalonga, e Manuel Rodrigues, Anastática (em homenagem a Alberto Pimenta), sem esquecer os dois livros da Ivone Mendes da Silva, Dano e Virtude e A Mulher do Meio. O interesse desta errância é o da pluralidade das experiências que, enquanto leitor, sou submetido. Se apenas lesse aquilo que consta do cânone literário, talvez nem o Anatole France estivesse a ler. Não teria, contudo, o prazer de me perder por caminhos que se bifurcam, se opõem, se anulam e apagam, que, para dizer tudo, não vão a lado nenhum. E que prazer maior pode haver, num mundo onde toda a gente quer ir a algum lado, do que não ir a lado nenhum?

[A minha crónica no Jornal Torrejano]

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