Ler um romance implica sempre um transportar-se para o universo
romanesco. Não é o mundo, o meu mundo, quotidiano que procuro e
encontro, mas um outro desenhado pela narrativa. Ler romances implica, desde
logo, uma capacidade de transporte e um exercício de estranhamento. O leitor é
um forasteiro que quer compreender as regras de conduta, as normas morais, o
sentido do fluxo do trânsito. Se leio um romance português, europeu, americano,
encontro, por estranho que possa ser o território colonizado pelo narrador e
suas personagens, inúmeras indicações que me são familiares e, passadas algumas
páginas, começo a sentir que estou em casa ou numa aldeia vizinha.
Ler Terra de Neve, de
Yasunari Kawabata, implica mais do que uma capacidade de transporte e um
exercício de estranhamento. O Japão e a sua cultura são radicalmente estranhos.
São mais estranhos ainda porque vivemos num tempo onde se tem a falaz ilusão de
que tudo está próximo e nada nos é desconhecido. Toda a gente já ouviu falar de
geishas, mas saberá efectivamente o que é uma geisha? Saberá distinguir entre
uma geisha que vive numa grande cidade como Kyoto ou Tóquio de uma que vive no
mundo rural onde se localizam as termas (território desta narrativa)? A questão
que se coloca ao leitor ocidental é interessante.
Numa recensão
encontrada na Internet, escreve-se: “Por
outras palavras, as cenas desdobram-se espontaneamente e nem tudo é explicado.
Tem que se pensar. Se alguém acha que pensar é árduo, então também precisa de
paciência”. Diria, porém, que
para ler a obra de Kawabata não é apenas necessário cumprir a prescrição de
Coleridge, a de suspender a descrença, aplicável a toda a literatura. É preciso
fazer o contrário do que é proposto pela recensão citada. Não é uma questão de
paciência e muito menos de pensar. O essencial será suspender mesmo o
pensamento e mergulhar naquele território de luz e sombras, não para desfazer
analiticamente o mistério mas para participar nele, contemplando-o.
O romance é solidário com a cultura japonesa e com os seus fundamentos
espirituais, tão adversos ao raciocínio, que se concretizam no Budismo Zen ou
na arte do haicai. A estranheza está aqui: produzir uma obra narrativa sob a
influência de uma cultura de suspensão ou minimização do discurso. A história
gira em torno de três personagens, o rico e diletante Shimamura (estava a escrever um livro sobre o bailado ocidental sem nunca ter visto um), um citadino de
Tóquio, casado, Komako, uma jovem geisha rural, – as duas personagens centrais –
e uma segunda jovem, Yoko, provavelmente destinada à profissão de geisha. Os
homens casados, segundo o costume, frequentam as termas sem a companhia das respectivas mulheres e
é nessa situação que Shimamura conheceu e se sentiu atraído por Komako. O
romance começa na viagem de comboio de Shimamura, quando volta às termas para
se encontrar com Komako. Nessa viagem, nota a presença de uma bela jovem, Yoko,
que acompanha um doente, e que sai na mesma estação.
Kawabata não faz da paisagem, da terra de neve com as suas mutações,
um quadro de fundo onde decorre a vida das personagens. Na tradição ocidental,
está inscrita uma quase oposição entre o mundo da vida e o espaço natural onde
essa vida decorre. Neste romance, porém, há uma simbiose entre a natureza e o
homem, que podemos captar, curiosamente, pela ideia de fluxo heraclitiano. O
jogo de sentimentos entre Shimamura e Komako ou o nascimento do interesse de
Shimamura por Yoko inscrevem-se na paisagem e fluem nela como qualquer outro
elemento natural. Nascimento, maturação e morte de um amor não diferem do fluxo
das estações, do ritmo da vida, do pulsar do cosmos.
Mesmo a morte de Yoko na cena final, uma morte que de alguma maneira
faz lembrar a tragédia grega, ajuda a inscrever o conjunto da vida humana no cosmos:
Mas quando [Shimamura] quis avançar para
a voz quase delirante [de Komako], os homens que se tinham precipitado para lhe
tirarem dos braços Yoko inerte, os homens que se apertavam à volta dela,
repeliram-no tão violentamente que perdeu o equilíbrio e cambaleou. Deu um
passo para se recompor e, no instante em que se inclinava para trás, a Via
Láctea, numa espécie de extraordinário frémito, fundiu-se nele.
A dificuldade que o leitor ocidental pode encontrar reside toda aqui.
Deverá entrar no território romanesco, mas não lhe cabe identificar-se
com o protagonista da acção – pois a acção nem sequer é uma categoria essencial a esta narrativa – mas pura e simplesmente contemplar a natureza das coisas no seu fluir eterno e efémero. A fusão da eternidade e da efemeridade de uma vida que flui faz toda a beleza da narrativa.
Yasunari Kawabata (2003). Terra
de Neve. Lisboa: Dom Quixote. Tradução de Armando da Silva Carvalho.
ResponderEliminarCaro JCM
Confesso a minha ignorância sem complexos e apenas me atrevo a dizer que, perante a cultura Japonesa, o "essencial será suspender mesmo o pensamento e mergulhar naquele território de luz e sombras", talvez assim possamos percebê-la um pouco melhor.
Abraço
Sim, mergulhar naquele território, aliás muito belo. O romance é belíssimo e a tradução - não sei se de japonês - tem uma escrita admirável.Aliás, o Armando da Silva Carvalho é um belíssimo poeta.
EliminarAbraço