Continua, no Público de hoje, a polémica entre Manuel Loff e Rui Ramos acerca da interpretação que este último faz, na História de Portugal que coordenou, sobre a natureza do Estado Novo. A minha posição sobre a polémica está aqui. Um post de Mário Moura no The Ressabiator faz um excelente levantamento da forma como Rui Ramos trunca as posições de Manuel Loff, tentando, através da vitimização, aniquilar a polémica. Rui Ramos tem uma vantagem sobre Manuel Loff, mas é uma vantagem não científica: escreve muito melhor que Loff. Por outro lado, há uma coisa em que estou mais próximo de Ramos. Não entendo o Estado Novo como um regime tecnicamente fascista. O regime teve múltiplas máscaras, afivelou mesmo alguns tiques fascistas, por uma questão de conveniência, mas não é confundível nem com o fascismo italiano nem com o nazismo alemão, embora se eles tivessem ganho a guerra, o comportamento de Salazar seria outro. Dito isto, a natureza do regime não se torna mais benigna nem perde um grama da violência institucional a que dava corpo. E aqui estou de acordo com Loff na crítica que ele faz do adoçamento do Estado Novo pela História de Rui Ramos (nunca Loff deu a entender que Rui Ramos era fascista, como este se vitimizou, mas apenas que ele interpreta mal a natureza do regime). Mas não é sobre isto que quero falar, mas sobre Salazar e a sua sombra.
Comecemos pela sombra. A polémica estala, na esfera pública, devido à sombra de Salazar. Tanto a direita como a esquerda têm dificuldade em lidar com o peso dessa sombra. A esquerda porque foi perseguida e derrotada, com violência e manipulação, por Salazar. A direita, ou aquelas pessoas que, tendo um passado oposicionista, hoje clamam por análises serenas (como se a serenidade fosse uma categoria epistemológica) têm ainda mais dificuldade em lidar com essa sombra. Mesmo os hipotéticos liberais que se esganiçam na blogosfera têm o seu coração naqueles tempos (que muitos só conhecem de ouvir falar lá em casa) em que a plebe não podia entregar-se ao luxo de viver em democracia. De facto, para muitos dizer que vivemos acima das nossas possibilidades não significa outra coisa senão isso: vivemos em democracia e a plebe tem direito de voto e liberdade de expressão. Por trás disto, contudo, há um juízo moral sobre o ditador: ele era uma pessoa virtuosa, não um corrupto, nem alguém que esmifrou o Estado português. Salazar nasceu pobre, governou pobre e morreu pobre. É verdade.
O equívoco está todo aqui. A corrupção não exista apenas ao nível económico. Os vícios dos homens não são todos iguais e há pessoas, certamente como Salazar, que não tiram qualquer prazer da riqueza ou a sua vida não se orienta para um acumular ilícito ou lícito de dinheiro. Isto não torna Salazar virtuoso, apenas nos diz que ele não tinha o vício da cupidez. Há, contudo, outros vícios tão ou mais repugnantes moralmente que esbulhar os dinheiros públicos. Salazar esbulhou a liberdade dos portugueses, reduziu-os constantemente à menoridade, tratou-os como crianças. Isto para se manter na glória do mando. A paixão pelo poder é tão viciosa como a paixão pelo dinheiro. Salazar não roubou o dinheiro do Estado, mas roubou a liberdade dos portugueses, roubou a sua iniciativa, roubou a sua dignidade ao tirar-lhes a liberdade. Não é honestidade instituir uma sociedade completamente vigiada por informadores, uma sociedade horrível onde todos tinham medo dos denunciantes e viviam calados. Mais, foi desonesto nas eleições, manipulou-as para se manter no poder. O regime do Estado Novo foi um regime altamente corrupto, pois corrompeu a liberdade dos cidadãos para garantir o prazer máximo do Professor Salazar: o exercício solitário do poder. Isto é imoral.
O poder é uma moeda tão corruptora quanto o dinheiro. É evidente que, como todos os viciados, Salazar tinha que sublimar o seu vício mostrando-o como missão. Mas o que esteve sempre em causa foi o seu vício privado de mandar, o prazer e a glória do poder, a subtracção à concorrência. E para tal valeu tudo, desde os assassinatos até à censura e ao delírio de uma pátria multicontinental e uma guerra colonial sem fim nem sentido. Morreu muita gente por causa do prazer solitário do Professor Salazar. A verdade é que o ditador não é uma figura virtuosa, mas o representante mais acabado dos que são viciados no poder e que não olham a meios para sustentarem o seu vício. Salazar para tal não precisava de enriquecer - julgo que ele desprezava os ricos - mas de submeter um povo ao seu onanismo político. E isto, apesar das aparências, é ainda mais imoral do que o comportamento canalha do politicozeco patifório da nossa democracia que rouba o Estado para enriquecer pessoalmente. Independentemente da denominação semântica do regime, este, mesmo se não foi espectacularmente violento, foi de uma violência preventiva atroz e de uma indignidade moral tão grande como qualquer ditadura. A moral não se limita ao dinheiro nem ao sexo. O respeito pelo outro - o mandamento máximo da moralidade - começa pelo respeito pela sua liberdade. Ora isso nunca foi um apanágio do exercício político do Professor Salazar e o regime político que arquitectou foi sumamente imoral.
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