quinta-feira, 20 de setembro de 2012

A mulher de Cristo

Alexander Andreyevich Ivanov - Appearance of Jesus Christ to Maria Magdalina (1835)

Ontem o Público referia a pretensa descoberta de um pequeno pedaço de papiro do século IV da nossa era, onde eram atribuídas a Jesus Cristo as seguintes palavras: "A minha mulher..." O que levanta, mais um vez, a possibilidade, já discutida no século II, de Cristo ter sido casado, isto é, ter comércio com uma mulher. Este pedaço de papiro é uma prova muitíssimo frágil, mas o problema que levanta está longe de ser irrelevante do ponto de vista da cultura ocidental fundada no cristianismo.

O que está em jogo não é bisbilhotar a vida privada de Cristo, mas determinar o valor da sexualidade e do matrimónio dentro de uma cultura cristã e, neste momento, pós-cristã. Como justificar o celibato dos padres se o próprio fundador da Igreja e filho de Deus teve mulher? A sensação que se tem, quem lê os evangelhos e as cartas de Paulo, é que desde muito cedo se desenha uma fractura entre uma visão positiva de sexualidade, da relação do homem com a mulher, e uma visão meramente permissiva, onde o casamento é admitido mas o valor da abstinência e da virgindade é superior. Estas duas linhas trabalharam ininterruptamente o cristianismo que se foi espalhando pelo médio oriente e pela Europa, tornando-se um pilar estrutural da nossa cultura.

Por outro lado, caso Cristo tenha sido casado, é o próprio valor religioso da consagração da virgindade física que é posto em causa. E isto não seria incoerente com a essência do cristianismo e com o papel do sacrifício crístico na cruz. Do ponto de vista religioso, esse supremo sacrifício não significa apenas a redenção do homem decaído mas, e ao mesmo tempo, a abolição de todos os sacrifícios humanos. E a consagração virginal de homens e mulheres, presente nas religiões pagãs, deixaria de ter um sentido legitimado na virgindade do Filho de Deus. Mais, abriria o caminho para uma outra compreensão da virgindade no âmbito da religião, mas agora de uma virgindade espiritual e não física. O que estaria em causa, como no século passado foi pensado por Raymond Abellio, seria uma castidade sem abstinência. A castidade não significaria a ausência de uma prática sexual mas a forma como ela seria encarada e realizada.

As tradições cristãs não protestantes não se fundam apenas nos textos neotestamentários mas na tradição que se foi construindo ao longo dos séculos, a qual é a autoridade última para interpretar os textos. Se Cristo tivesse sido casado, uma parte dessa tradição seria posta em causa e as próprias Igrejas, nomeadamente a Católica, seriam obrigadas a repensar o valor, agora absoluto, do casamento e, concomitantemente, da sexualidade, o que seria uma verdadeira revolução cultural. O que não deixaria de ser perturbante para a interpretação vigente, pois acabaria por cruzar um certo dionisismo pagão com o cristianismo.

Obrigaria ainda à interrogação sobre as causas que teriam conduzido, na tradição apostólica, onde Paulo de Tarso tem um papel fulcral, ao recalcamento desse acto verdadeiramente seminal que teria sido, caso fosse verdadeiro, o casamento de Cristo. Levaria também a repensar o papel que o influxo das tradições neoplatónicas e neopitagóricas teve no cristianismo e na relação deste com o corpo e a sexualidade. O pequeno papiro pode ser uma falsificação ou uma irrelevância enquanto prova. Contudo, o problema que nele se esconde tem uma natureza que transcende a vida privada de um homem privado. Para todos os efeitos, e falo aqui apenas do ponto de vista cultural, Cristo não é um homem meramente privado, é o fundador de uma cultura que se foi moldando à sua imagem e semelhança ou, em certas ocasiões, contra essa imagem e essa semelhança.

2 comentários:

  1. Não sendo eu crente, não faço juízos de valor, mas gostaria de lhe dizer que li com muito interesse este excelente texto sobre uma temática que, se não fossem as personagens envolvidas, nem sequer daria que falar.
    Tenha uma boa noite

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