quinta-feira, 6 de setembro de 2012

A usura da avareza

Christoph Ludwig Agricola - Batalha entre cavaleiros

Veja o meu sobrinho, fale com ele como entender. Lembre-se apenas de que ele é um pateta. E não tenha qualquer consideração pelo nome, título e outras frivolidades. Temo que a sua generosidade dê demasiada atenção a tudo isso. Já não há nobres, meu caro amigo, ponha isso na sua cabeça. Conheci dois ou três, no tempo da minha juventude. Eram personagens ridículas, mas extraordinariamente típicas. Faziam lembrar os pequenos carvalhos de vinte centímetros que os japoneses cultivam em vasinhos. Os vasinhos são os nossos usos, os nossos costumes. Não há família que possa resistir à lenta usura da avareza quando a lei é igual para todos e a opinião, juíza e mestra. O nobres de hoje são burgueses odiosos. (Georges Bernanos, Le Journal d'un Curé de Campagne)

Bernanos publica o romance (Diário de um Páraco de Aldeia, na esgotadíssima tradução portuguesa) em 1935 e 1936. O que se constata nesta passagem de um diálogo entre dois padres é a rasura do mundo. A nobreza tornou-se um exercício frívolo de patetice e os valores dominantes são os da burguesia vitoriosa. O modo de vida burguês assenta num traço caracterial que, desde sempre, roubou legitimidade moral ao regimes liberais. Esse traço está claramente enunciado na citação: a avareza. A visão aristocrática do mundo, na idealização que transportava mais do que na praxis quotidiana, continha-se em si a ideia de liberalidade. Esta é entendida como generosidade. Os valores liberais burgueses assentam não na generosidade mas na avareza do indivíduo. Liberalidade aristocrática e liberalismo burguês estão nos antípodas.

Contrariamente ao que muita gente propala por aí, a desligitimação moral dos governos liberais-burgueses não nasceu na esquerda e nos movimentos operários e populares. Estes apenas aproveitaram uma constatação que tanto a nobreza como o clero católico tinham desde sempre feito. A usura da avareza corrói as famílias aristocráticas, transforma nobres em burgueses odiosos, mas não só. A sua natureza ácida - e esta acidez tem nomes específicos: eficácia, eficiência, a inovação, etc. - corrói continuamente toda a estrutura social, pondo em cada momento em perigo a ordem estabelecida e ameaçando continuamente os mais fracos. E por muito que os ideólogos liberais-burgueses (e Portugal, de um dia para o outro, descobriu-se pejado deles) se esforcem para polir a imagem dos novos senhores, nunca a ilegitimidade moral do mundo burguês triunfante se poderá apagar perante os valores superiores da liberalidade aristocrática, mesmo se estes surgem travestidos na condenação moral que a esquerda, enquanto representante do quarto estado, dirige à presente situação. 

2 comentários:

  1. Ao ler este texto lembrei-me de "O Leopardo" de Visconti, não porque estabeleça uma extrapolação directa e, sobretudo, exacta, para os dias de hoje, mas porque existem sinais evidentes do que estava para acontecer. Penso eu.
    Se me permite, aqui fica um link para um poste que inseri num dos meus blogues anteriores:

    http://leblancseing.blogspot.pt/2012/09/referencias-2.html

    Abraço

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    1. Também estou de acordo consigo. No Leopardo, já estava tudo o que depois viria ser a ordem do mundo. A aristocracia perdera a legitimidade moral confiada na trama da hereditariedade. Uma nova legitimidade nascia e mais tenaz do que a da aristocracia, pois a hereditariedade é apenas uma vantagem individual, mas que a realidade pode remover (falência, esbanjamento, etc.) sem que o essencial do sistema seja posto em causa.

      Abraço

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