Mary Cassatt - Two Children at the Seashore (1884)
Conta Platão, no Timeu 22
b, que Sólon, tendo-se deslocado ao Egipto, foi recebido com grandes honrarias
na cidade de Saïs. O motivo do reconhecimento deve-se a que Saïs e a cidade de
Sólon, Atenas, foram fundadas pela mesma deusa, Neith, na língua egípcia, e
Atena, na língua helénica. Havia então uma partilha de origem, o que talvez
significasse, dado que o sacerdote egípcio que falava com Sólon situava a
fundação de Atenas mil anos antes de Saïs, um elo colonial esquecido pelos
gregos.
Sólon, para fazer os sacerdotes a falar sobre a antiguidade, pôs-se a
evocar aquilo que de mais antigo era conhecido pelos gregos. É neste momento
que um dos padres, já muito idoso, diz: «Sólon, Sólon, vós, os gregos, sois
eternas crianças; velho, um grego não o pode ser.» E perante a perplexidade do
heleno, continuou: «Jovens, vós o sois todos de alma, pois não tendes nela
qualquer opinião transmitida oralmente desde a antiguidade, nem nenhum saber
encanecido pelo tempo».
Quando hoje falamos no aniquilamento das tradições, na ausência de
conhecimento do passado, na pouca espessura da memória do homem ocidental,
julgamos estar perante um fenómeno recente. Ora aquilo que Platão nos diz
através das palavras do sacerdote egípcio surge assim como o símbolo de um
destino do Ocidente. Não são os gregos antigos apenas que são desmemoriados. A
perda da memória do passado é o destino de toda uma civilização que, já naquele
tempo, se precipitava em direcção do futuro.
O que distingue aquele instante do actual é que Sólon e as crianças
que eram os gregos ainda eram habitados por uma nostalgia que os lembrava dessa
ignorância. E o ser criança da acusação do velho padre é sentido fatalmente
como uma reprimenda e uma intimação ao crescimento. Os nossos dias, porém, não
apenas desconhecem qualquer nostalgia do passado, como a desprezariam se ela se
manifestasse. O ser criança dos ocidentais tornou-se a única realidade que lhes
é acessível. Cada nova geração ocidental é educada para continuar criança, numa
infantilização sem fim à vista. Mesmo se acontecimentos dramáticos, como as
guerras mundiais, retiraram uma ou duas gerações do infantário existencial, o
destino logo se abateu sobre nós e a cultura da eterna infância progridiu ainda
mais rapidamente. Foi esse o destino que o velho sacerdote nos destinou
naquelas estranhas palavras evocadas ou inventadas por Platão. (averomundo, 2008/06/08)
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