Jean Baptiste Greuze - A visita ao sacerdote (1786)
A vaga de refugiados vindos dos países árabes tem levantado, para além de uma grande e justificada onda de solidariedade, um conjunto de receios, que têm origem num possível conflito cultural e religioso, o qual, pela experiência dos últimos anos, pode evoluir para um conflito político violento. Como já aqui escrevi, o temor das consequências políticas não deve impedir a realização do dever moral de acolhimento. Não quero, porém, aqui discutir se estes temores são reais ou imaginários. Para dizer a verdade, não tenho dados empíricos nem poder de projecção no futuro para chegar a uma conclusão minimamente sólida. Interessa-me antes chamar a atenção para uma ilusão - a do multiculturalismo - sobre a possibilidade de convívio entre culturas. Esse convívio é necessário, mas será fácil ou mesmo possível?
Parece-me muito discutível que o convívio, no mesmo território, entre a cultura ocidental e as culturas - nomeadamente a islâmica - fundadas na força imperativa do princípio de autoridade, se processe sem grandes perturbações. Qual é o problema que está aqui em jogo? Este problema é aquele que, em muitos países europeus, desencadeou fortes rejeições, a muitos muçulmanos residentes, da cultura ocidental e conduziu, a grupos mais inflamados, ao programa de punição ou de conversão, mais violenta ou mais pacífica, dos infiéis. O problema está todo na nossa cultura. A cultura ocidental, desde o fim da chamada Idade Média, assenta na contínua dissolução do princípio de autoridade, fundamentalmente da autoridade moral. O conflito, no início dos tempos modernos, entre protestantes e católicos já tinha muito a ver com este problema. Na cultura ocidental, mesmo nos países católicos, não há autoridade moral acima da nossa consciência. Desde que se cumpra um conjunto de regras civis, politicamente determinadas, cada um faz o que bem quer e lhe apetece e só a si mesmo, e à sua consciência, tem de prestar contas.
Esta destruição do princípio de autoridade moral exterior é absolutamente dissolvente para uma cultura como a islâmica, onde o clérigo tem autoridade moral - muitas vezes com repercussões penais - sobre os fiéis, onde o homem tem autoridade moral sobre a mulher, etc. A ofensiva dos radicais islâmicos na Europa é uma reacção contra a dissolução do princípio de autoridade moral, uma reacção, que aproveita o ressentimento social, contra a nossa cultura assente na dissolução do da autoridade moral exterior à consciência de cada um. Este conflito não está a ser vivido na Europa pela primeira vez. Também dentro do cristianismo isso aconteceu e aconteceu com um resultado muito curioso. Mesmo nos países católicos, onde o princípio de autoridade do clérigo se manteve por mais tempo, a dissolução do princípio de autoridade moral acabou por acontecer, remetendo o problema da crença e das práticas religiosas e morais para a esfera da consciência individual. A opinião de um padre católico sobre um problema moral vale tanto como a minha.
Com isto surge uma questão: será que também os muçulmanos, em contacto uma cultura dissolutória como a nossa, acabarão por adaptar-se como aconteceu com os católicos? Não faço ideia, não sou profeta nem sei ler o destino no voo dos pássaros. Há um dado, contudo, que não é muito favorável a essa hipótese. Enquanto que, desde o início, o Islão assenta no princípio de autoridade do Profeta e dos seus continuadores, o cristianismo nasce de uma figura - Jesus Cristo - que foi ela própria dissolutória do princípio de autoridade moral e religiosa do seu tempo. A autoridade que a casta sacerdotal do cristianismo ostentou durante muitos e muitos séculos foi um acrescento - vindo dos continuadores dos apóstolos e do casamento espúrio da religião cristã com o poder político romano - sobre uma religião que, na sua origem, apelava mais a consciência do indivíduo do que à autoridade moral de uma hierarquia religiosa. No cristianismo há dispositivos culturais suficientes para lidar com a dissolução do princípio de autoridade. Será que a comunidade muçulmana europeia encontrará também um caminho para viver numa cultura assente apenas na autoridade moral do sujeito? Este é o problema fundamental.
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