Este artigo do Público sobre um momento da história do universo está repleto de metáforas. Galáxias canibais, galáxias adolescentes, berço efervescente de estrelas, fábricas de estrelas, galáxias que não se alimentam, agregados de estrelas que povoam o espaço. O artigo não tem carácter científico, trata-se apenas de divulgação genérica de resultados obtidos na investigação. A utilização desta metafórica, contudo, não deixa de ter interesse.
Paul Ricoeur, no conhecido estudo sobre a metáfora (A Metáfora Viva - MV) explora a conexão entre modelos e metáforas. Referindo-se a um artigo de Max Black, escrevia: "O argumento principal é o de que a metáfora está para a linguagem poética como o modelo está para a linguagem científica, quanto à relação com o real. Ora, na linguagem científica, o modelo é essencialmente um instrumento heurístico que visa, por intermédio da ficção, destruir uma interpretação inadequada e abrir caminho a uma nova interpretação, mais adequada." (MV. Porto: Res, p. 357)
Pela analogia instaurada, percebe-se que a metáfora, ao nível da poética, seria ainda um instrumento heurístico, um instrumento de descoberta, que, ao suspender e destruir a linguagem corrente, destruiria uma interpretação inadequada do real e instauraria uma nova e mais adequada. O que me interessa, porém, é uma outra coisa, a relação da metáfora com o próprio exercício da ciência.
Na divulgação científica, a metáfora, como outros processos tropológicos ou retóricos, tem uma função de mediação entre a linguagem científica e a linguagem comum. Oferece uma intuição ao grande público que não está habilitado a compreender a linguagem esotérica da teoria científica. Esta intuição é feita, contrariamente à metáfora poética, pela construção de uma desadequação com a realidade. É a passagem de um linguagem mais adequada, a dos conceitos científicos, para a linguagem popular do senso comum, através do exercício da imaginação. A esta imaginação poder-se-ia dar o nome de imaginação redutora. Reduz o abstracto do conceito, embora com conteúdo empírico, à linguagem corrente, fornecendo um conteúdo imagético a esta linguagem vulgar. A função da metáfora, neste caso, é ambivalente. Ao reduzir o conceito científico, a metáfora usada na divulgação científica amplia a linguagem popular. Mas esta ampliação, como se viu, não torna essa linguagem mais adequada. Muitas vezes acaba por reforço certo tipo de preconceitos conferindo-lhes uma espécie de autoridade pseudo-científica.
Por outro lado, que relação haverá entre a metáfora e a praxis científica? A polissemia inerente aos processos metafóricos parece ser tudo o que a linguagem científica recusa. No entanto, seria bom compreender como muitos conceitos, de conteúdo empírico bem definido, resultam de processos de redefinição de antigas metáforas. Esta compreensão não visa apenas fazer a história do conceito, mas de o interrogar de forma a compreender o que nele ainda persiste de imagético, de metafórico, de retórico, apesar de todo o esforço de neutralização do mitopoiético a que a ciência se entrega. Será possível constituir poéticas e retóricas da ciência? Eis um dos problemas que a investigação da relação entre metáfora e conceito científico poderia responder.
Um segundo problema está ligado ao papel heurístico da metáfora (e não dos modelos, note-se) na ciência. Poderão certas metáforas abrir caminho para a produção de conhecimentos mais adequados? Se sim, como ocorrem esses processos? Como é que a poética e a retórica se ligam a processos de investigação, mesmo nas chamadas ciências duras? Também é pertinente a questão contrária. Como é que uma certa poética e uma certa retórica existente nas comunidades científicas, com o seu jargão onde haverá metáforas e outros tropos, constituem obstáculos à produção de conhecimento. Em resumo, a questão do papel heurístico da metáfora remete para o papel epistemológico desta. O que pode tornar evidente que a relação entre metáfora e ciência está muito para além da questão da divulgação científica.
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