Fazendo jus ao nome, o Entre as Brumas da Memória recordou o dia 11 de Março de 1975. Passaram 37 anos do acontecimento, mas ele permanece como uma sombra difusa sobre a vida colectiva. O importante do 11 de Março não é aquilo que a capa do Diário de Lisboa mostra, a fuga do general Spínola e de outros dirigentes do presuntivo golpe militar, nem a prisão de oficiais revoltosos ou as palavras de Vasco Gonçalves. O importante, como salienta Joana Lopes, foi o pós 14 de Março com a instituição do Conselho da Revolução e a nacionalização da banca e dos seguros, o que trouxe, por arrasto, parte substancial da economia para as mãos do Estado. Sobre o acontecimento há ainda alguns aspectos que merecem ser pensados e que dão que pensar acerca da nossa cegueira.
Em primeiro lugar, o trágico da acção. A questão colonial era um factor fracturante nas elites políticas da época. Não apenas os defensores do regime caído a 25 de Abril de 1974, mas também alguns sectores aderentes à transição de regime opunham-se ao processo de independência da ex-colónias portuguesas. O medo vai ter um papel crucial em tudo o que vai acontecer. O medo das independências vai lançar um sector do país contra as transformações políticas em curso. O mesmo medo, agora da outra parte, vai conduzir não apenas à criação do Conselho da Revolução - um órgão que vai tutelar à transição à democracia, como se fosse possível uma democracia sob tutela militar - mas também às nacionalizações e à estatização de parte substancial da economia. Como sempre acontece, os agentes estavam cegos para o futuro. Aqueles que acompanharam Spínola não perceberam que a aposta era demasiado alta e, ao perderem, iriam perder muito mais que as colónias em jogo. Aqueles que apoiaram as nacionalizações, e foram muitos, mais ou menos entusiasmados, da esquerda à direita, não compreenderam que estavam perante um dos principais problemas com que o país se ia defrontar. O medo da reacção criou a necessidade de cortar as bases económicas de uma contra-revolução. Ambos os medos eram reais, quero dizer, as pessoas sentiam-nos, efectivamente. No entanto, nunca saberemos se eles, de facto, correspondiam a alguma coisa em concreto. Nunca saberemos se poderia ter havido outra forma de tratar o problema colonial, nunca saberemos se a democracia teria caído sem as nacionalizações. É a cegueira dos actores que compõe a tragédia da acção, e a História talvez não seja outra coisa do que o resultado cego de agentes cegos.
Em segundo lugar, é preciso notar que, de um ponto de vista histórico e de reflexão sobre a história, a questão da culpa é irrelevante. A culpa é uma noção moral que as partes envolvidas na acção usam como arma de arremesso contra o adversário ou o inimigo. A culpabilização é um sintoma da pulsão para aniquilar o outro. Isto serve para todas as partes envolvidas. Há, contudo, um exercício que pode ser objecto de trabalho empírico. Trata-se das consequências das decisões tomadas. Mas também sobre estas há duas perspectivas. Uma fundamentalmente descritiva. A descrição das cadeias de acontecimentos históricos. O passar do tempo liberta-nos da cegueira, pois o futuro revelou-se ao transitar para passado. A outra perspectiva seria a de um juízo sobre o rumo dos acontecimentos posteriores ao 11 de Março. O problema, porém, é o da ausência de um critério para os julgar. Nenhum juiz verdadeiramente isento poderá dizer que a opção tomada foi a melhor ou a pior, pois não tem um padrão neutro que lhe permita avaliar os acontecimentos. Aqui revela-se uma outra cegueira. A cegueira da História enquanto disciplina. Ou a História se limita a descrever ou narrar os acontecimentos e é cega para os avaliar, ou a História avalia os acontecimentos que narra e é cega pelo brilho ideológico que toma como padrão.
Em terceiro lugar, o 11 de Março de 1975 revela uma coisa muito interessante e muito importante para compreender os dias de hoje. Trata-se da força das ideias. O apoio às nacionalizações vai da extrema-esquerda ao PPD (o partido de Sá Carneiro). Mesmo que certos apoios como os de Soares e de Sá Carneiro tenham sido meramente tácticos, o que está em jogo é o prestígio na época das ideias socializadoras da economia. Da esquerda à direita não havia ninguém que não fosse socialista. Mesmo a direita estruturada em torno do CDS de Freitas do Amaral era democrata-cristã, i. e., reivindicavada a doutrina social da Igreja. Talvez a força motora das nacionalizações não tenha sido o golpe do 11 de Março, mas o medo de retorno ao antigo regime aliado à forte cotação no mercado político da época das ideias socialistas. Hoje assistimos a algo de muito semelhante, embora de sinal contrário. As ideias liberais ganharam enorme força e, como em 1975 acontecia com o socialismo, parecem hoje uma evidência que decorre da simples natureza das coisas. Mas mais uma vez, a cegueira toma conta de todos nós. A força das ideias reside na capacidade de brilharem. Ora como todos nós sabemos, aquilo que mais brilha é o que mais nos ofusca. As ideias socialistas ofuscaram-nos em 1975, hoje são as ideias liberais que o fazem.
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