Vale a pena ler este artigo do Público, de Paulo Moura. Está lá tudo. Está lá a corrupção endémica, cuja matriz se encontrava já no regime soviético, mas que se desenvolveu livremente na era pós-comunista. Está lá também a força e a fragilidade da economia russa, bem como os problemas demográficos e o crescente nacionalismo. Mas está lá outra coisa a que se deve dar atenção. Para perceber essa outra coisa vale a pena fazer um contraste. Num artigo, também do Público, sobre o livro de Henry Miller O Colosso de Maroussi, Edmund Kelley afirma que "Quando saí da Segunda Guerra Mundial, descobri, gradualmente, uma tradição humanista pela qual me apaixonei. Queria apresentá-la ao mundo pelo ensino: como um homem pode transcender-se ao acreditar na literatura e na cultura. Depois, comecei a pensar se essa ideia estaria a sobreviver. E julgo que perdemos isso."
Esta importância de uma certa tradição veiculada pela literatura e pela cultura está praticamente moribunda no Ocidente. Para lá de alguns cultores, hoje em dia essa tradição é frequentemente alvo de escárnio e maldizer. Se adicionarmos a isso a erosão completa de qualquer conhecimento histórico e um desprezo generalizado pela religião, temos o retrato espiritual do homem ocidental, onde se inclui o homem português. O artigo de Paulo Moura mostra outra coisa na Rússia. Mostra uma forte classe média emergente, crente no trabalho e no mérito pessoal. Contudo, estas crenças estão fortemente estribadas no acesso à cultura e, fundamentalmente, aos grandes clássicos da literatura russa. Estes são lidos avidamente. A isto junta-se o interesse pela história e uma atenção especial ao cristianismo ortodoxo. É esta classe média emergente que vai ter hoje um papel determinante na eleição de Putin.
Talvez o mais interessante de tudo isto esteja na conexão entre o desenvolvimento espiritual e o desenvolvimento económico. No mundo ocidental, tudo foi reduzido à questão económica. Por exemplo, a generalidade da classe média portuguesa - ou do que ainda dela resta - é de uma ignorância confrangedora. Um exemplo interessantíssimo foi a decisão do actual governo português de transformar o Ministério da Cultura numa mera Secretaria de Estado. Isto diz tudo da percepção que as elites têm do papel da cultura no desenvolvimento da sociedade. Ora a cultura, nomeadamente a literatura, não é um mero exercício de entretenimento. Ela contribui para a criação de uma identidade e para a formação do assentimento que nos diz que vale a pena vivermos uns com os outros. Se os europeus conhecessem a sua grande literatura, se as classes médias europeias passeassem por Pessoa, Joyce, Proust, Kafka, Broch, Mann, Musil, Cervantes, Goethe, Racine, etc., etc., como as russas passeiam por Tólstoi, Tchékhov, Dostoiévky, etc. talvez não estivéssemos na triste e difícil situação em que nos encontramos. Os homens não são apenas máquinas para fazer dinheiro. Mesmo para isso, contudo, eles precisam de um incentivo que vai muito para além da avidez natural, precisam que o espírito dê um sentido aceitável a essa avidez material.
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