Graças, pois, à Natureza pela incompatibilidade, pela vaidade invejosamente emuladora, pela ânsia insaciável de posses ou também do mandar! Sem elas, todas as excelentes disposições naturais da humanidade dormitariam eternamente sem desabrochar. O homem quer concórdia; mas a natureza sabe melhor o que é bom para a sua espécie, e quer discórdia. Ele quer viver comodamente e na satisfação; a natureza, porém, quer que ele saia da indolência e da satisfação ociosa, que mergulhe no trabalho e nas contrariedades para, em contrapartida, encontrar também os meios de se livrar com sagacidade daquela situação. Os motivos naturais, as fontes da insociabilidade e da resistência geral, de que brotam tantos males, mas que impelem também, no entanto, repetidamente a novas tensões das forças, por conseguinte, a novos desenvolvimentos das disposições naturais, revelam de igual modo o ordenamento de um sábio criador; e não, por exemplo, a mão de um espírito mau, que, por inveja, tenha estragado ou danificado a sua obra magnificente. (Kant (1784), Ideia de uma história universal com um propósito cosmopolita, 4.ª proposição)
Esta é uma das fundamentações mais interessantes do liberalismo alguma vez escritas. Kant valoriza, tendo em vista o progresso da humanidade na realização das suas disposições naturais, não a propensão sociável que há em nós, mas as qualidades insociáveis. A incompatibilidade e a resistência aos outros, a vaidade e a inveja, o desejo de poder ou a riqueza. Aqui está pensada a condição de possibilidade do mercado. O mercado é o lugar de troca, mas só existe mercado se os homens se orientarem pelas suas tendências insociáveis e egoístas. Kant, sem se referir ao mercado, acaba por legitimá-lo moralmente. Como? Como lugar de regulação do produto das ambições humanas, como o lugar onde estas adquirem um valor moral resultante da emulação dos concorrentes. O mercado é o lugar onde a discórdia natural dos homens (aquela que a sábia natureza deseja que entre nós exista) substitui a guerra e a violência pela troca de produtos e bens, uma troca, em última análise, fundada no contrato.
Esta discórdia entre os homens que os conduz à emulação tem um outro valor moral. Ela conduz a que os homens saiam da indolência e do ócio, que desenvolvam a sua sagacidade, que façam emergir as disposições naturais que residem no fundo de si mesmos. Contrariamente a uma certa visão cristã (preferencialmente, católica) e/ou socialista que vêem no egoísmo o mal, Kant vê no exercício do egoísmo, melhor, na concorrência entre egoísmos que se limitam entre-si um valor moral. Este valor moral não diz respeito, no entanto, ao indivíduo, mas à espécie tomada como um todo. A subtileza do pensamento kantiano põe em tensão dois aspectos da vida moral. Por um lado, do ponto de vista estritamente moral, cada um deve agir segundo o puro dever, agir em contradição com as suas tendências egoístas. Por outro, olhando a espécie humana de uma perspectiva geral e histórica, essas tendências egoístas, dentro de certos limites estabelecidos pelo direito numa sociedade civil, são factor de progresso moral da humanidade devido ao desenvolvimento progressivo, pela emulação e concorrência, das óptimas disposições naturais que dormem dentro da nós. As tendências egoístas são a revelação de um sábio ordenamento da natureza.
Sem uma leitura muito profunda da filosofia de Kant - o grande pensador da Aufklärung - não é possível compreender nem o liberalismo clássico nem as suas variantes actuais, o ordoliberalismo alemão e o neoliberalismo americano. Isto significa, antes de mais, um esforço para compreender os valores morais que estão na base do liberalismo. São estes valores morais que o justificam e o legitimam. Veja-se o discurso moralista do actual governo. Sem o saberem, os actuais governantes acabam por reproduzir um certo kantismo. As consequências parecem-me claras. Não basta reclamar contra a maldade visceral inerente aos mercados ou às ideias liberais. É preciso avaliá-las. Para tal, não basta partir de preconceitos ideológicos ou denunciar os preconceitos ideológicos inerentes ao liberalismo e à defesa dos mercados. É preciso compreender o princípio moral e a vida ética subjacentes ao liberalismo. É preciso compreender o significado daquilo a que poderia chamar o heraclitianismo de Kant.
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