O tema da derrelicção entrou na nossa cultura para expressar o abandono de Cristo na cruz. Ganhou uma tonalidade filosófica quando Emmanuel Lévinas traduz por déreliction o termo alemão Geworfenheit utilizado, em Ser e Tempo, por Martin Heidegger. O filósofo alemão usou o termo para designar a situação existencial do homem, o facto de ele ser atirado ao mundo, de se debater no meio das suas possibilidades e de aí ser abandonado.
Este abandono metafísico que constitui a nossa própria e mais íntima natureza teve, na história da nossa espécie, uma resposta geral dada pela vida social. O facto de sermos atirados para o mundo, de sermos abandonados nele, foi sempre dado dentro de uma comunidade, a família, o grupo social, a tribo, a nação. Quando Heidegger publica Ser e Tempo, em 1927, os sentimentos comunitários estavam ao rubro. Entre a primeira e a segunda guerras mundiais, os nacionalismo fervilhavam e o espírito de comunidade era, muitas vezes para o pior, vivo e actuante. Heidegger não descreve uma realidade social, embora ela já pudesse ser entrevista, mas uma experiência ontológica e existencial.
Zygmunt Bauman, um sociólogo polaco, tem vindo, na sua vasta obra, a chamar a atenção para um outro fenómeno de abandono, este agora de carácter social. Ao analisar os laços sociais da vida contemporânea, o que ele encontra é a fusão ou a liquefacção das ligações que nos prendiam uns aos outros, que estabeleciam relações de mútua dependência entre as classes sociais e que, dessa maneira, solidificavam o espaço público e a vida das comunidades. A dissolução das famílias, relações meramente pontuais e utilitárias entre elites e gente comum, estão a criar um outro tipo de actor, o vagabundo.
Podemos pensar que o desenvolvimento actual do capitalismo está a destruir aquilo que foi, na história geral da espécie humana, a protecção contra a derrelicção, contra o abandono metafísico que representa o nascimento de cada ser humano. A dissolução dos laços sociais imposta pela nova economia (destruição da família, desresponsabilização do capital perante o trabalho, etc.) vem acrescentar abandono ao abandono. O vagabundo - e a vagabundagem é o destino que se pretende para grande parte da população europeia - é a figura central da nova experiência do mundo trazida pelo actual desenvolvimento económico e social.
O vagabundo é aquele que foi obrigado a romper os laços sociais, o emigrante que se afastou da sua comunidade, o trabalhador precário que amanhã será despedido, o doutorando que, concluído o doutoramento, não terá que fazer, o desempregado que não mais trabalhará, os velhos que foram deixados na sua velhice. As comunidades existiam para fazer frente ao abandono metafísico pensado por Heidegger. O grande problema é que hoje em dia, as elites económicas, cada vez mais elusivas, e as elites políticas, cada vez mais subservientes, têm por finalidade destruir os laços comunitários, construir multidões de vagabundos ou, quando as coisas se complicam, criar comunidades-gueto onde os vagabundos são encurralados.
Ao expirar na cruz, Cristo diz: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?" Esta experiência crística da derrelicção, do abandono, é cada vez mais a experiência de milhões de homens. Não o abandono de Deus em plena morte. Não o abandono do ser atirado para o mundo ao nascer. Mas o abandono pela sociedade e pelas suas estruturas políticas em plena vida. O desmantelamento do Estado social é o princípio organizador do novo abandono transformador de homens com destino em meros vagabundos perdidos na floresta da vida.
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