[Recuperação dos posts do meu antigo blogue averomundo, retirado de circulação. Este post recupera, com ligeiras alterações e num único post, quatro posts sobre Os Buddenbrook, de Thomas Mann. ]
Reli a primeira obra de Thomas
Mann. Tinha-a lido há quase trinta anos, na tradução de Herbert Caro, para os
Livros do Brasil. Agora comprei a nova tradução, de Gilda Lopes Encarnação,
para a Dom Quixote. Não me lembrava praticamente de nada, tirando o
pano de fundo da intriga, a ambiência de uma família burguesa, numa cidade
alemã do século XIX. Foi como se a memória, ao fim deste tempo, tivesse
reduzido a riqueza das peripécias e personagens a uma mera abstracção que, para
sua comodidade, pode arquivar num pequeníssimo espaço. O deprimente é que isso
não se passa apenas com a literatura. Todas as nossas experiências, exaltantes
que tenham sido, jazem agora como meras abstracções num canto obscuro do
cérebro. Mas essa é a natureza das coisas, nem vale a pena protestar.
Esta releitura fez-me pensar
sobre o que é a grande literatura. Tinha tentado reler alguns romances de
Hermann Hesse de que gostara bastante. Foi um experiência decepcionante.
Deixei-os todos de lado, ao fim de algumas páginas. O mesmo me aconteceu com um
dos romances do Sartre que mais me marcou, A Idade da Razão. Quase no
começo, constatei que já não tinha paciência. O tempo desses livros tinha
passado definitivamente. Com Os Buddenbrook, pelo contrário, ainda
existe avidez na leitura, embora seja uma avidez mais sensata e ponderada, mais
observadora da técnica e da arte. O que são grandes livros? Aqueles que podemos
reler.
O romance permite, muitas vezes,
associar o prazer estético da obra com uma certa aprendizagem sobre a dimensão
social da vida humana. Não que o romance vise apreender e explicar o social,
mas, ao tomá-lo como matéria romanesca, permite que o leitor compreenda certas
realidades de uma forma mais viva que aquela que lhe é dada pelo estudo de um
documento académico. Os Buddenbrook permite intuir a natureza da
tradição burguesa da Europa central e do norte, de cariz protestante. O ethos burguês,
uma coisa tão estranha à tradição peninsular, está ali desocultado na sua
plenitude. O cálculo entre prudência e risco, a importância da empresa no seio
da cidade, a piedade protestante são a matéria sobre a qual se constrói a
intriga nuclear da acção romanesca. Para um europeu do Sul, tudo aquilo não
deixa de ter um ar estranho e, fundamentalmente, ajuda-o a perceber a profunda
reticência com que a Alemanha da senhora Merkel olha para nós. Mas, o mais
curioso, aquilo que hoje se ouve acerca dos europeus meridionais era a voz
corrente nos alemães do norte acerca dos bávaros, seus irmãos do sul da
Alemanha, como Thomas Mann não deixa de retratar em Os Buddenbrook. É
como se houvesse, impregnada na mente da espécie humana, uma espécie de racismo
geográfico, onde o Sul surge sempre como inferior ao Norte.
No apogeu do sucesso empresarial,
político e pessoal, Thomas Buddenbrook sente um deslaçamento interior como se
os acontecimentos, que até aí dominara, começassem a fugir ao seu controlo. Não
era nada de visível, apenas uma sensação interior. Os gregos diriam que a Tyche (a
deusa Fortuna para os romanos) o abandonara. No entanto, pelo menos no período
helenístico, a deusa tomou uma coloração de pura arbitrariedade, como se ela
concedesse os seus favores e desfavores ao acaso. Thomas Buddenbrook, porém,
associa essa perda da mão sobre o mundo, essa incapacidade de submeter a
realidade aos seus projectos, não ao abandono da deusa mas a um excesso seu. A
sua nova casa, a troca da rica casa, onde se instalara ao casar, por outra maior e mais esplendorosa. Este excesso, esta ultrapassagem da justa medida, é
aquilo a que os gregos do período clássico chamavam hybris. Embora Thomas
Mann não fale, no romance, em Tyche e hybris, é isso que está em jogo.
Thomas Buddenbrook sente o deslaçamento interior como uma punição do seu
excesso. Aqui, de forma talvez surpreendente, percebe-se a conexão entre o
mundo burguês do século XIX e os gregos da antiguidade clássica. A ordem dos negócios,
para os burgueses modernos, ou a ordem pessoal e cívica, para os antigos
gregos, estão ligadas à sophrosyne, à prudência fundada no
auto-conhecimento, o qual nos diz que limites não devemos ultrapassar.
Havia, na época clássica dos
gregos, a esperança de que uma conduta sensata evitasse os desvarios da
fortuna. Na tragédia, por exemplo, a vinda da má fortuna está sempre ligada a
um excesso, embora este não esteja na mão do herói evitar. De certa maneira,
Thomas Buddenbrook também não pode evitar a nova casa que a situação social
lhe impõe. Deste ponto de vista, Os Buddenbrook escondem sob o modelo
romanesco uma intencionalidade trágica. Mas aquilo que talvez seja mais
interessante pensar resida nos nossos dias. Se na época a que corresponde o
romance, segundo e terceiro quartéis do século XIX, ainda é possível fazer uma
conexão entre a perda da fortuna com a hybris, hoje em dia, onde tudo foi
reduzido ao puro jogo (o jogo dos mercados, por exemplo), a fortuna, a deusa Tyche,
está desligada do comportamento, seja ele sensato ou excessivo. É o tempo dos
aventureiros. Como no período helenístico, a Tyche tornou-se arbitrária e
cega. Ora o período helenístico marca o começo do fim do esplendor dos gregos,
o início da sua derrocada. Que o início da nossa comece na Grécia, só espantará
quem ache que a história começou com a eleição da senhora Merkel.
Os Buddenbrook são um
reflexão sobre a estultícia das linhagens. Em quatro gerações, uma família de
comerciantes ergue-se, atinge o apogeu, declina e desaparece sem deixar rasto.
O último da estirpe morre de tifo aos quinze anos. O tifo, porém, não era mais
que o temor sentido por uma actividade que chocava a sua sensibilidade musical.
Isto não significa que dentro das famílias não haja, por vezes, uma
inclinação para a repetição de certas funções sociais. Significa apenas que
isso se deve à pressão do meio, às vantagens que essa família foi conseguindo
acumular, ou às desvantagens que uma outra não soube ou não pôde evitar.
Linhagens são exercícios da imaginação, devaneios sobre uma continuidade de
aptidões que não existe, uma tentativa desesperada de controlar o futuro e o
medo que se abate sobre cada família pela entrada de um novo membro. O
princípio monárquico, a enfatização das genealogias, a afirmação da estirpe são
ritos de exorcismo perante o insondável mistério que cada ser humano
representa. O jovem e delicado Johann Buddenbrook preferiu o mistério da morte
à segurança da genealogia. Um verdadeiro republicano.
Apesar do pouco tempo que tenho tido ultimamente, não podia deixar de aqui vir, num instante, congratulá-lo por este excelente texto sobre os Buddenbrook. Também li o livro há uns trinta anos, pouca memória me ficou dele, embora o mesmo não se tenha passado com A Montanha Mágica, do mesmo autor, que li três vezes e que tenciono reler mais uma vez. A Montanha Mágica é um dos livros da minha vida e um dos mais portentosos romences do século XX. Guardo na memória muitos pormenores deste livro, o enredo, as descrições da montanha e dos estados de alma do herói que não é herói, o bom Hans Castorp; guardo na memória os diálogos entre os senhores Setembrini e Nafta e até me recordo do nome dos charutos que alguém nesse livro fumava, Maria Mancini...Bem, não fora este seu excelente texto e provavelmente nunca mais teria vontade de reler Os Buddenbrook. Não fora uma certa virgulação a mais e o texto estaria perfeito. Perdoe-me o reparo, deformação profissional...Em relação ao Norte e ao Sul, ainda há pouco tentava traduzir um ditado que por cá usamos bastante e com orgulho, creio que tem origem numa frase de Virgílio, «a sorte favorece ( ou protege) os audazes» a uma alemã, minha aluna que....de repente se lembrou de que em alemão se diz que (não me recordo agora em alemão) a «sorte protege os...eficientes» ou os «esforçados» ou os «que muito trabalham»...Duas mentalidades. Eu continuo a preferir a frase latina pois, sem audácia, não há trabalho que nos valha. Enfim. Obrigada pelo texto!
ResponderEliminarMaria, um duplo muito obrigado. Pela congratulação e pela virgulação. Vou ver o que posso fazer. Como isto não é "ne varietur", pode variar. A Montanha Mágica, na nova tradução, também de Gilda Lopes da Encarnação, está na calha para releitura. É um dos meus romances preferidos, claro.
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