Desde o século XIX que no romance moderno português existe
uma dupla linhagem. A do romance de actualidade e a do romance histórico. Este
último encontra entre os seus cultores Alexandre Herculano e Almeida Garrett.
Há no entanto um conjunto de escritores de segunda linha – isto é, que não
atingiram a canonização de Herculano, Garrett, Camilo, Eça e mesmo de Júlio
Dinis – que cultivaram o género e que terão tido uma influência efectiva na
sociedade de então, continuando a ser lidos ainda no século XX. Uma dessas
figuras foi o escritor portuense Arnaldo Gama (1828 – 1869), que se pode
inscrever no segundo romantismo. O romance A
Caldeira de Pêro Botelho (1866) foi a última obra publicada em vida do
autor.
O tempo romanesco é o de Luís de Camões e a narrativa cobre
acontecimentos que se desenrolam em Coimbra, na Madeira e, no epílogo, passados
trinta e sete anos dos acontecimentos centrais, em Lisboa, o que permite ao
autor fornecer aos leitores uma visão completa do desenlace dos acontecimentos.
Uma questão de amor – os amores contrariados de D. Beatriz de Moura, uma nobre
coimbrã, e de Diogo Botelho, um aristocrata madeirense – abre o caminho para um
conjunto de aventuras, em que participam os amigos de Diogo Botelho, Luís Vaz
de Camões e Simão de Ornelas, então estudantes em Coimbra. Posteriormente, o
centro da acção, já sem a presença de Camões, transita para a Madeira onde se
conhece o desenlace dos amores entre Beatriz e Diogo, envolvidos em novas
aventuras e desventuras.
Uma literatura de entretenimento, para usar uma palavra hoje
em voga? Sim e não. Sim, porque o conjunto de peripécias mantém o leitor
comprometido com a leitura. Não, porque há uma intenção didáctica, uma visão
moral do mundo e uma reflexão sobre aspectos da própria literatura, isto é, uma
espécie de considerações meta-literárias que o autor partilha com os leitores.
Estamos longe de uma obra que queira pura e simplesmente ajudar o leitor da
classe média da época a enfrentar o tédio da vida burguesa, oferecendo-lhe uma
narrativa de capa e espada.
Do ponto de vista didáctico, há uma espécie de trabalho de
historiador que procura dar a conhecer, a um leitor que vive três séculos
depois, como era vida dos universitários de Coimbra no século XVI, bem como
alguns aspectos da vida das famílias mais poderosas da Madeira ou algumas
vicissitudes pelas quais a população do arquipélago passava devido à sua
situação geográfica. Percebe-se também como os poderes fácticos se sobrepunham
à justiça, a qual é mostrada como uma espécie de joguete entre os poderes
rivais. Este didactismo residirá na ilusão de que aquilo que História não
consegue fazer – transportar-nos para o passado – a imaginação literária terá o
poder de o fazer, ao mergulhar-nos nas vidas e acções das personagens
romanescas.
Considerando que as personagens pertencem a famílias
aristocráticas, o problema da honra é central na questão moral. O bem e o mal
são aferidos a partir de questões de honra, tendo esta o papel, juntamente com
o amor e o desejo erótico, de desencadear as acções dos protagonistas. No
entanto, o desenlace e o destino das várias personagens acaba por representar
uma reflexão tingida pelo cepticismo, como se as visões do mundo e da vida que
os homens acalentam e a que dão tanta importância não passassem, como é dito no
Eclesiastes, de vaidade de vaidades. É
tudo vaidade. Os destinos dos protagonistas – e onde se incluiu a morte de
Camões na miséria – confirmam que a vaidade humana acabará por ser castigada
pela própria vida e que os projectos que os homens desenham, e pelos quais
lutam, não passam de ilusões que a realidade acabará por reduzir a pó. Esta
visão moral do mundo é solidária das reflexões meta-literárias que o autor
introduz no romance. A dada altura diz que os seus romances não têm heróis e
esse é o problema deles, mas ele não vê razões para os criar, pois está
interessado na realidade. E a realidade reside no destino sombrio das
personagens. De todas elas.
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