sábado, 16 de fevereiro de 2019

Arnaldo Gama, A Caldeira de Pêro Botelho


Desde o século XIX que no romance moderno português existe uma dupla linhagem. A do romance de actualidade e a do romance histórico. Este último encontra entre os seus cultores Alexandre Herculano e Almeida Garrett. Há no entanto um conjunto de escritores de segunda linha – isto é, que não atingiram a canonização de Herculano, Garrett, Camilo, Eça e mesmo de Júlio Dinis – que cultivaram o género e que terão tido uma influência efectiva na sociedade de então, continuando a ser lidos ainda no século XX. Uma dessas figuras foi o escritor portuense Arnaldo Gama (1828 – 1869), que se pode inscrever no segundo romantismo. O romance A Caldeira de Pêro Botelho (1866) foi a última obra publicada em vida do autor.

O tempo romanesco é o de Luís de Camões e a narrativa cobre acontecimentos que se desenrolam em Coimbra, na Madeira e, no epílogo, passados trinta e sete anos dos acontecimentos centrais, em Lisboa, o que permite ao autor fornecer aos leitores uma visão completa do desenlace dos acontecimentos. Uma questão de amor – os amores contrariados de D. Beatriz de Moura, uma nobre coimbrã, e de Diogo Botelho, um aristocrata madeirense – abre o caminho para um conjunto de aventuras, em que participam os amigos de Diogo Botelho, Luís Vaz de Camões e Simão de Ornelas, então estudantes em Coimbra. Posteriormente, o centro da acção, já sem a presença de Camões, transita para a Madeira onde se conhece o desenlace dos amores entre Beatriz e Diogo, envolvidos em novas aventuras e desventuras.

Uma literatura de entretenimento, para usar uma palavra hoje em voga? Sim e não. Sim, porque o conjunto de peripécias mantém o leitor comprometido com a leitura. Não, porque há uma intenção didáctica, uma visão moral do mundo e uma reflexão sobre aspectos da própria literatura, isto é, uma espécie de considerações meta-literárias que o autor partilha com os leitores. Estamos longe de uma obra que queira pura e simplesmente ajudar o leitor da classe média da época a enfrentar o tédio da vida burguesa, oferecendo-lhe uma narrativa de capa e espada.

Do ponto de vista didáctico, há uma espécie de trabalho de historiador que procura dar a conhecer, a um leitor que vive três séculos depois, como era vida dos universitários de Coimbra no século XVI, bem como alguns aspectos da vida das famílias mais poderosas da Madeira ou algumas vicissitudes pelas quais a população do arquipélago passava devido à sua situação geográfica. Percebe-se também como os poderes fácticos se sobrepunham à justiça, a qual é mostrada como uma espécie de joguete entre os poderes rivais. Este didactismo residirá na ilusão de que aquilo que História não consegue fazer – transportar-nos para o passado – a imaginação literária terá o poder de o fazer, ao mergulhar-nos nas vidas e acções das personagens romanescas.

Considerando que as personagens pertencem a famílias aristocráticas, o problema da honra é central na questão moral. O bem e o mal são aferidos a partir de questões de honra, tendo esta o papel, juntamente com o amor e o desejo erótico, de desencadear as acções dos protagonistas. No entanto, o desenlace e o destino das várias personagens acaba por representar uma reflexão tingida pelo cepticismo, como se as visões do mundo e da vida que os homens acalentam e a que dão tanta importância não passassem, como é dito no Eclesiastes, de vaidade de vaidades. É tudo vaidade. Os destinos dos protagonistas – e onde se incluiu a morte de Camões na miséria – confirmam que a vaidade humana acabará por ser castigada pela própria vida e que os projectos que os homens desenham, e pelos quais lutam, não passam de ilusões que a realidade acabará por reduzir a pó. Esta visão moral do mundo é solidária das reflexões meta-literárias que o autor introduz no romance. A dada altura diz que os seus romances não têm heróis e esse é o problema deles, mas ele não vê razões para os criar, pois está interessado na realidade. E a realidade reside no destino sombrio das personagens. De todas elas.

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